quarta-feira, agosto 23, 2006

Uma análise sensata

por Eduardo Dutra Aydos, cientista político


Há cerca de 45 dias, em 26 de junho, concedi uma entrevista à repórter Adriana Negreiros, da revista Playboy, que estava elaborando matéria sobre o discurso presidencial e as razões pelas quais Luiz Inácio conseguia driblar as tentativas da oposição em responsabilizá-lo pela corrupção nos altos escalões do seu governo. Naquela ocasião, abordei o tema da sua blindagem perante a opinião pública e o modo de contorná-la. Comprometi-me, também, de aguardar a publicação da matéria que deveria sair na edição de aniversário da revista, que ora chega às bancas. Vejo que, em seu lugar, foi editada uma entrevista com o ex-presidente FHC. Por óbvio, uma escolha editorialmente correta. O tema que eu abordara, não obstante, continua inexplorado e atual, tanto mais quanto os indicadores de pesquisa revelam gradativa recuperação da posição do candidato Lula nas preferências eleitorais. É tempo hábil, pois, e há razão fundada para dar-se publicação alternativa ao inteiro teor do meu pensamento expresso, quando assim me referi à equação necessária do risco-Lula para o futuro da democracia neste país: "A REELEIÇÃO DE LUIZ INÁCIO É UMA BOMBA, NÓS JÁ SABEMOS DE QUE MATERIAL É FEITA, COMO FOI CONSTRUÍDA E COMO PODE SER DESATIVADA. A QUESTÃO QUE SE COLOCA É SABER QUEM VAI DESARMÁ-LA "

Pergunta: Por que não colam no Presidente Luiz Inácio Lula da Silva as
acusações de corrupção? Quais as razões dessa "blindagem"?
Resposta: Simplesmente porque essas acusações nunca foram efetivamente formalizadas. Nossa tradição cultural - em que pese arraigado o expediente do "dar um jeito" e do "toma lá dá cá" - é essencialmente formalista. É um paradoxo. O Brasil depende da economia informal, mas não se comove pelo seu destino. Brasília inteira respira o jogo pesado da corrupção política, mas enquanto ela não for transformada num processo político, administrativo ou judicial, é como se não existisse. O Brasil inteiro sabe que o Presidente Lula tinha conhecimento de tudo, ou de quase tudo que ocorria nos bastidores do seu governo. Que é o grande beneficiário do esquema de corrupção que acampou no Palácio do Planalto. E que é tão culpado, por omissão ou comissão, quanto qualquer um dos já indiciados e punidos. Mas enquanto essa convicção não for transformada num processo de impeachment autorizado pela Câmara dos Deputados, ou numa denúncia por crime comum perante o STF, não se torna moeda política capaz de promover a sua responsabilização. O que se vulgarizou no conceito de 'blindagem' política, não é uma qualidade pessoal dos seus detentores. Também não é uma armadura que os torna invulneráveis à crítica. É, tão somente, o resultado da falta de grude nas acusações graves, pelas quais deveriam responder.
Pergunta: Diante deste quadro, o Sr. considera estável a posição do Presidente Lula nas pesquisas, ou existe a possibilidade da sua reversão?
Resposta:
Não há estabilidade possível nessa combinação da nossa experiência política, que combina uma democracia formal pouco assumida, com uma governança factóide pouco resistida. Essa questão nos leva ao âmago da crise que estamos vivendo e que projeta uma dolorosa e provisória constatação. Há muitas coisas que hoje dividem os brasileiros - uns são petistas, outros não; uns acham o Lula maravilhoso, outros não; uns aprovam o governo, outros não; uns concordam com tudo que aí está, outros não. Mas, por outro lado e por enquanto, só parece configurar-se um grande consenso nacional: o que aponta para o despreparo político e/ou desorientação estratégica das oposições partidárias. Sou forçado a concordar que essa é uma triste pequena verdade, de enorme conseqüência, entretanto, na formação do nosso cotidiano. É por isso que São Paulo pega fogo, e o Lula sobe nas pesquisas; o Congresso é depredado, e o Lula sobe nas pesquisas, o Judiciário paga vexame nas decisões do TSE, e o Lula continua subindo nas pesquisas; o Boris Casoy saiu do ar, a Primeira Leitura acabou, e obviamente o Lula, comemorou do alto das suas crescentes preferências eleitorais; daqui a pouco explodiremos todos, e o Lula já não vai mais precisar das pesquisas. Você então tem razão em perguntar: Por que? Até quando? Então respondo. Essa escalada política não é irreversível. Mas, exige mais do que as oposições partidárias, neste momento, têm consciência e estão dispostas a investir na sua contenção.
Pergunta: E, quanto ao que se tem chamado de "afrouxamento moral" do povo
brasileiro? Não seria essa a causa das dificuldades que as oposições enfrentam para avançar os seus índices de preferência eleitoral?
Resposta:
Não, o que isso está a traduzir é, bem ao contrário, a incapacidade das nossas elites políticas, em responderem de forma eficaz ao modo como se vive eticamente no Brasil. Há traços importantes de valor no formalismo da nossa cultura, e há muita racionalidade no comportamento da população quando ela não cola, apriorísticamente e fora do devido processo, acusações criminais na personalidade política dos seus dirigentes. Além da preservação da governabilidade, essa atitude responde ao princípio que, a dura penas, aprendemos a respeitar e defender, segundo o qual "todos se presumem inocentes, até que se prove o contrário". Lutamos por isso contra o autoritarismo e o erigimos num valor constitucional a ser preservado. O que se espera, não obstante, é que a sociedade civil estruturada e as autoridades competentes, quando se apresentem os indícios claros e inequívocos do envolvimento criminal dos governantes, exerçam as suas prerrogativas e cumpram o seu dever constitucional. É da sua omissão que se trata nos dias que passam.
Pergunta: E como se manifesta essa omissão?

Resposta:
Pela escolha dos caminhos institucionais pelos quais se processam as denúncias. Pelo jogo de empurra do gesto conseqüente. A OAB demitiu-se do pedido de impeachment, e jogou tudo nas mãos do Procurador Geral da República. O Congresso acaba de fazer o mesmo, quando a CPI dos Bingos, indicia o Presidente por omissão (veja bem, crime de omissão), mas, ao invés de pedir o impeachment, joga igualmente a responsabilidade da formalização do processo, capaz de responsabilizá-lo, sobre as costas do Procurador Geral da República. E este, sabe-se, é o que tem o horizonte de possibilidades de ação mais estreito, dentre todos estes atores políticos. Porque está circunscrito à denúncia, mediante prova cabal de crime comum, quando, muito antes disso, o que se trata no comportamento do Presidente, é de flagrantes e intoleráveis infrações do seu dever político-administrativo e constitucional. Há, neste caso, uma tarefa a ser cumprida pela institucionalidade vigente e ela não está sendo executada. Para que a democracia sobreviva, alguém, em algum ponto da rede político-institucional, tem que ser capaz de acabar o jogo de empurra e assumir a máxima, que Franklin Delano Roosevelt mantinha, numa tabuleta, sobre a sua mesa de trabalho: "AQUI ACABA A ENROLAÇÃO" (tradução livre de "Here Stops the Buck").
Pergunta: Não seria do próprio povo, no exercício do voto, essa responsabilidade?
Resposta: Não. Uma característica essencial da democracia constitucional é o que os juristas denominam da competência indeclinável. O juiz não pode deixar de decidir uma causa. O administrador não pode deixar de fazer o que a lei lhe determina. O representante político não pode eximir-se à fidelidade da sua consciência política. O povo não pode eximir-se da responsabilidade pela escolha dos seus governantes, mas a institucionalidade democrática não pode eximir-se ao dever de vigiar o exercício do seu mandato e punir o respectivo abuso. Se o Presidente exorbitou das suas funções, alguém tem que assumir a responsabilidade de dizer-lhe e à Nação: você pode ter a maioria das intenções de voto, mas enquanto este país for uma democracia, terá que responder por seus atos e omissões como a Constituição determina.
Pergunta: E se isso não acontecer?
Resposta: É muito grande a falta, e maior ainda a conseqüência, quando alguma instância se demite nessa rede de direitos e deveres. Na sua esteira, a consciência cidadã do ilícito político se esboroa no ritual de uma denúncia vazia , não por falta de materialidade, mas pelo virtual cerceamento do respectivo acesso à Justiça. E as prerrogativas conquistadas a duras penas - da nossa liberdade de expressão, investigação e imprensa -, ricocheteiam perigosamente na ausência de uma liderança democrática, conseqüente e virtuosa para levá-las a termo de conseqüência, nas instâncias de controle institucional. Há, então, risco grave de desastre, pela frustração cidadã e o relativismo ético que defluem do sentimento generalizado dessa falha. Perde-se a noção dos princípios republicanos e por isso não se consegue definir e sustentar um padrão ético de comportamento, que prevaleça nas relações de Estado e Sociedade. Perde-se a noção do tempo histórico e, por conseguinte, não se consegue mais encontrar o modo de vivê-lo dignamente. Cairmos no fundo deste poço seria uma falta quase insanável, uma distância quase intransponível no horizonte político da minha geração. Mas sou otimista, não penso que já tenhamos atingido este estágio avançado, na escalada da nossa desagregação político-institucional!
Pergunta: Nesta sua análise, o senhor afirma a existência de um processo em curso, para a desconstrução da democracia?
Resposta: Com certeza, e a primeira condição para detê-lo, é reconhecer a natureza desta crise e o que significa, concretamente, para o Brasil, o risco-Lula 2006. Usando uma linguagem figurada, o que até aqui está se tentando fazer neste país, é tratar uma pandemia como um resfriado comum. Melhor dito, é como tratar a ameaça de uma bomba de destruição massiva, estrategicamente colocada sob os depósitos de petróleo de uma refinaria, mediante o isolamento da área, numa operação de rotina do corpo de bombeiros da empresa. A reeleição do Presidente Lula é a bomba, o projeto totalitário do PT é o petróleo, e a refinaria é a democracia brasileira. Se a bomba explodir, o petróleo pega fogo e a refinaria vai pelos ares e não tem bombeiro que seja capaz de impedi-lo. Para a democracia brasileira, admitir que o Presidente Lula, sem ter sido formalmente acusado por todas as omissões e comissões criminosas do seu governo, concorra e, eventualmente, vença as eleições 2006, equivale a um prognóstico fatal. Há uma ordem sensata de medidas a serem obrigatoriamente tomadas nestas circunstâncias. Antes de se perguntar sobre quem falhou, ou por que razões o artefato foi parar na refinaria, a primeira coisa a fazer é desarmar a bomba. Concomitantemente, é preciso reforçar a segurança da refinaria para que outros artefatos não sejam colocadas. Então, poderemos nos dedicar às reformas na estrutura da empresa, capazes de inviabilizar esse tipo de atentado e promover a sua dissuasão. Tudo isso é possível e necessário, porque nós já conhecemos a natureza da crise, sabemos como desarmá-la, temos noção do que fazer para aumentar a segurança pública, e possuímos condições para a curto e médio prazo promover as reformas institucionais capazes de consolidar e aperfeiçoar a democracia.
Pergunta: Acompanhando seu pensamento, a pergunta que cabe é quem pode desarmar a bomba, e como fazê-lo sem explodir com a própria democracia?
Resposta: Você foi direto ao ponto e à conclusão. Existem dois caminhos para fazê-lo: promover o processo de impeachment e ganhar as eleições. Há um sentimento, ainda prevalecente, que eles se excluem mutuamente. Eu venho batendo há meses na tecla que eles se completam necessariamente. Parto do mesmo raciocínio, simples e irrefutável do jurista Miguel Reale Jr. em entrevista à revista Veja, em 17 de abril de 2006: se Lula for eleito depois de tudo que ocorreu no seu governo nós estaremos dando uma carta-branca para que um autoritarismo desbragado tome conta do país. O Dr. Reale, naquela entrevista, acreditava que não se poderia atribuir a quem de direito o desarme dessa bomba, porque o Congresso estaria contaminado pelo mesmo esquema de corrupção. Jogava, então, todas as fichas da democracia em risco na eventualidade de um "impeachment nas urnas". Eu não consigo adotar esse pensamento mágico a respeito do processo eleitoral e imaginar que essa derrota eleitoral de um governo, que se reforça pela própria intangibilidade da sua truculência, possa ocorrer sem o grude de uma acusação formal, capaz de dissolver no espaço e no tempo da consciência popular a condição factóide da sua "blindagem política".
Pergunta: Mesmo no curso do processo eleitoral isso seria possível?
Resposta:
Da mesma forma como é possível ao Presidente continuar governando o país. O que está em jogo é o resgate da credibilidade política do Congresso Nacional. E a sua viabilidade depende apenas de um esforço conjunto da sociedade e das demais instituições da democracia, para que se lhe assegurem as condições políticas e jurídicas necessárias à decretação da suspeição e impedimento - para fins de intervenção no processo de impeachment - de todos os congressistas envolvidos em esquemas de corrupção, seja do mensalão, seja da operação sanguessugas. Com isso, deverá também, ser redefinido, com base no número dos parlamentares restantes, o quorum qualificado para a aprovação do pedido de impeachment. O Congresso nacional, políticamente realinhado, por via dessa condição saneadora, terá toda a legitimidade para receber a denúncia, aprovar o processo e submeter o Presidente da República a julgamento por infrações político-administrativas. A questão posta pela crise é de natureza institucional, deve ser institucionalmente resolvida, e este é o caminho crítico, estreito e necessário, por onde ainda pode passar o resgate dessa institucionalidade possível.

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