quinta-feira, agosto 10, 2006

Plano Real político

Albert Fishlow, professor da Universidade de Columbia, deu uma entrevista a O Globo (30/7/06) na qual clama por um "Plano Real" para a política. Assim como fizemos na década de 90 do século passado, reformando as instituições econômicas e criando uma nova cultura para lidar com a moeda e acabar com a inflação, seria preciso reformar nossas instituições partidárias para assegurar uma mudan ça que aumentasse a conexão entre o eleitorado e seus representantes e acabasse com a corrupção sistêmica.

Não posso estar mais de acordo com Fishlow. Sei que os críticos perguntarão: vocês que estiveram oito anos no governo, por que não fizeram isso? Embora o não tê-lo feito não invalide a premência de atuar agora, já respondi inúmeras vezes que me concentrei no que era mais urgente na época: as reformas econômicas e a reorganização do Estado para torná-lo capaz de melhorar as políti cas públicas (na educação, na saúde, na Previdência, na assistência social etc.) e para adequar-se às novas realidades das privatizações, controlando-as com as agências reguladoras. Apoiamos, é certo, medidas de reforma política, a principal das quais foi o voto eletrônico, grande instrumento de moralização. Apoiamos também reformas pontuais, como a que introduz a cláusula de desempenho (dita "de barreira"), que diminuirá o número dos partidos, e muitas outras, infelizmente ainda em tramitação lenta no Congresso, como a proibição de coligações nas eleições proporcionais ou a relativa à fidelidade partidária.

O programa do futuro governo do PSDB deve se concentrar em uns poucos e claros pontos: ênfase total em educação, sobretudo na fundamental, com amplo acesso ao uso dos computadores; apoio à pesquisa e à inovação; retomada das obras de infra-estrutura, com investimentos públicos e com autonomia das agências reguladoras, livrando-as da ingerência partidária; atenção e foco nas questões de segurança e violência; políticas urbanas e metropolitanas específicas, principalmente na área de saneamento e habitação. Finalmente, uma reforma política abrangente, cuja hora soou.

Perguntarão, e a economia? Respondo: vai razoavelmente bem, embora esquálida. Falta crescer mais, haver maior controle no desperdício do dinheiro público, maior eficiência governamental e menos desatenção às agruras cíclicas, como no caso da agricultura.

Paira, não obstante, tremen da dúvida: e a moralidade pública? E a distância entre o prometido e o realizado? Ou, para ser mais claro: e a ladroagem que ronda o Congresso e o governo? É contra isso que a população se revolta e é disso que deriva o mal-estar corrente no país, a despeito dos indicadores sociais e econômicos mostrarem algum avanço. É por isso que a reforma política se transformou em pré-condição para o êxito de quaisquer políticas públicas. A restauração da seriedade das instituições e o respeito à ética se tornaram necessários para o próprio crescimento da economia.

Há um lado da questão que é moral, depende da conduta das pessoas, especialmente dos líderes políticos. De nada adianta o presidente Lula dizer que a corrupção é "institucional", que vem de longe e que ele não tem nada a ver com isso. Tem sim, porque é o chefe do governo e porque não demitiu no momento oportuno quem deveria nem se envergonha de fazer campanha ao lado de prevaricadores. Mas também nós da oposição, para amanhã sustentarmos uma reforma política, precisamos, desde hoje, expulsar os parlamentares que tenham se envolvido de fato com os sanguessugas e não permitir que esses e outros com antecedentes semelhantes se reapresentem ao eleitorado sob a manta de nossas siglas. Feito isso, teremos moral para fazer a reforma política necessária.

Ela implica mudar o processo eleitoral. O ideal é termos a coragem de marchar para o voto distrital. Para mim, ele não precisaria sequer ser misto. Para que compl icar a compreensão do eleitor, misturando o voto majoritário com o proporcional? Isso tinha sentido quando as pequenas agremiações ideológicas (os partidos comunistas) se distinguiam radicalmente de outros segmentos da esquerda. Hoje, é desnecessário: fundir-se-ão de qualquer modo no PT, no PSDB, no PDT, no PPS ou no PS, nos que sobrarem depois da cláusula de barreira. E o PV será mais eficaz formando uma corrente em vários partidos do que em seu esplêndido isolamento.

Será difícil, e mbora não impossível, convencer o Congresso a aprovar o voto distrital para vigência imediata. Que pelo menos seja aplicado em 2014, como se fez com a cláusula de barreira, aceita para valer na segunda eleição posterior à aprovação. Isso desde que se institua o voto distrital para a eleição dos vereadores em 2008. O eleitorado veria as vantagens imediatas do sistema: em cada distrito da cidade, cada partido (seis ou sete, depois da cláusula de barreira) apresentará apenas um candidato, ganhando quem obtiver, em primeiro ou segundo turno, a maioria absoluta dos votos. O eleitor saberá em quem votou e poderá cobrar seu desempenho. Quando, em 2010 preferivelmente, ou em 2014, se for impossível antes, o sistema se estender para a Câmara Federal, ao invés dos deputados se mancomunarem com os prefeitos e com seus financiadores privados para prestar-lhes (e receber) favores, terão o olhar do eleitor mais próximo e tratarão de cuidar mais dele do que de seu bolso, se quiserem se reeleger.

Isso só não basta para restabelecer um regime de decência na vida pública, mas já seria um passo significativo. Ao lado da reforma do sistema eleitoral, a fidelidade partidária e a reforma do modo como se faz o orçamento, a começar pela proibição das chamadas "emendas de parlamentares" que se transformaram em gazuas, são medidas a serem aprovadas imediatamente. Assim como é salutar que o Tribunal Eleitoral interprete a Constituição latu sensu e passe a julgar as impugnações à diplomação de pessoas comprovadamente envolvidas em corrupção.

E como não se faz boa política sem sonhar: não terá chegado a hora, também, depois dessas reformas, do regime parlamentarista, com presidente eleito pelo voto direto, com força suficiente para equilibrar o jogo político?

Fernando Henrique Cardoso
Sociólogo, foi presidente da República

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