quarta-feira, agosto 16, 2006

O maior dos cabos eleitorais

Existe uma verdade inquestionável desafiando a vitalidade das instituições e das lideranças políticas brasileiras: no andar da carruagem, o PCC é que decidirá quem será o próximo presidente do Brasil. Hoje, a facção criminosa paulista elege quem quiser e derruba quem quiser. Poucas vezes chegamos a uma eleição presidencial com um fator tão preponderante para ativar (e eventualmente desativar) os temores da classe média e, através dessa ativação (ou desativação), direcionar as intenções de voto.

É uma enorme angústia diagnosticar que só será eleito em outubro o presidente que o PCC escolher. Se persistir nos ataques sazonais em São Paulo, derruba Geraldo Alckmin; se resolver atacar em massa Brasil afora, derruba Lula.

Como são inteligentes e bem assessorados, os líderes da organização criminosa mais conhecida do Brasil já devem ter percebido a dimensão da sua força eleitoral. Sabem que conseguem, não só assustar a sociedade, mas, por meio dos sustos que provocam com suas ações ousadas, direcionar as vontades de uma parcela expressiva do eleitorado.

Isso NÃO PODE continuar acontecendo.

A primeiríssima coisa a fazer é fazer com que - acima da disputa eleitoral - candidatos, lideranças e partidos firmem um pacto para impedir que o crime organizado possa chantagear as forças políticas, a sociedade e a própria Nação brasileira.

O primeiro movimento cabe ao presidente Lula da Silva: ele deve parar imediatamente com o joguinho de pressões eleitorais que vem fazendo com o governo de São Paulo, usando as Forças Armadas como varinha de condão capaz de resolver o problema em dois minutos. Lula e seu ministro da Justiça não parecem preocupados em solucionar o dramático avanço do crime organizado, mas em aproveitar esse triste evento para faturar prestígio eleitoral e afundar seu oponente. Os dois se comprazem em disseminar um binômio esperto: de um lado, alardeando que o crime organizado no Estado governado por seu oponente está fora de controle; por outro, blefando que é detentor e controlador da única solução instantânea e definitiva.

Trata-se de uma estratégia diabólica e perversa.

Diabólica, porque dá um xeque-mate no governo paulista: se aceitar a presença das Forças Armadas, admite sua incapacidade de enfrentar o crime organizado (e se desmoraliza automaticamente se os ataques pararem, a seguir); se não aceitar e novos ataques sobrevierem, parecerá que isso aconteceu porque as Forças Armadas não foram para as ruas. Paga por ter cão e paga por não ter cão.

Perversa, porque é inverídica. As Forças Armadas não têm perfil nem competência para cumprir papel de polícia. Encher as ruas paulistas de soldados produziria pouca eficácia na luta contra o crime organizado. Pelo contrário, poderia submeter a instituição Forças Armadas a uma situação desconfortável, repetindo o episódio da caça aos 12 fuzis roubados do Exército, no Rio. Lá, os militares foram para a rua e bateram cabeça durante dias. O único efeito obtido foi incomodar o funcionamento do tráfico com aquele monte de soldados nas ruas. Preocupado em retomar os seus negócios, o tráfico se apressou em descobrir os fuzis e os devolveu. Se não fosse por isso, o Exército estaria procurando fuzis até hoje.

Nessa questão, Lula sugere que o único papel das Forças Armadas é botar soldados nas ruas (o que levaria os cidadãos a concluir obviamente pela falência da segurança pública de São Paulo, um argumento eleitoral que, aliás, muito lhe interessa). É uma proposta rasa e até irresponsável, porque promete o que não pode entregar.

Mas o presidente não diz no que, efetivamente, as Forças Armadas podem contribuir com a crise paulista. Os próprios militares dizem: podem contribuir com inteligência (no que são mais sofisticados que a polícia), com geomapeamento (no que são mais detalhistas) e com equipamentos (como helicópteros). Os militares deixam muito claro que não aprovam o uso de suas forças em policiamento ostensivo nas ruas. Soldado nas ruas, como sugere Lula, não passa de um equívoco, uma bravata ineficaz, porque eles não são treinados para esse tipo de intervenção e não estão familiarizados com essa modalidade de enfrentamento. Ademais, o crime organizado tem recorrido a táticas terroristas, o que é uma ameaça delicada. Os criminosos têm inserção social inegável e trafegam com desenvoltura em muitas comunidades pobres, o que retrata uma situação de tratamento tipicamente policial.

Melhor que ninguém, os comandantes do Exército sabem o que dizem, porque conhecem a força que têm e a sua vocação de combate. Lula e Thomaz Bastos foram informados disso, mas fingem que não ouviram e parecem se divertir com o xeque-mate dado no impotente governador Cláudio Lembo - perde se aceitar o Exército, perde se não aceitar. Divertem-se, é lógico, porque ganham votos enquanto brincam e depauperam o quociente eleitoral de Geraldo Alckmin.

Este é um lado do problema.

O outro é os candidatos tucanos devem, a partir de agora, se preocupar mais com os vices que escolhem. Alckmin escolheu mal em 2002 e agora sofre com Lembo mais perdido do que cego em tiroteio. Lembo não tem culpa no recrudescimento do crime organizado, mas sua performance tem sido literalmente (e sem nenhum trocadilho, que aqui seria de mau gosto) claudicante.D a mesma forma que tem sobrado soberba a Lula, tem faltado firmeza a Lembo. Não deveria sobrar nem faltar nenhuma das duas.

Vamos verificar por quê. A partir de 2003, as transferências de recursos do governo federal para São Paulo na área de segurança foram reduzidos em 86,7%, contou o Estadão no último domingo. Em 2002 o governo federal repassou R$ 223,2 milhões a São Paulo; em 2005, já com Lula, os repasses desabaram para R$ 29,6 milhões. O investimento federal per capita em São Paulo foi de R$ 6,67 em 2001 e não passou de R$ 0,81 (isto mesmo: oitenta e um centavos) em 2005. Na área de inteligência, vital para combater o crime organizado, o governo federal propôs um orçamento patético para 2005 - R$ 5,6 milhões - mas não repassou nem isso: liberou só R$ 1,9 milhão. O Fundo Penitenciário Nacional repassou a São Paulo R$ 136,6 milhões em 2001, R$ 75,1 milhões em 2002, R$ 21,4 milhões em 2003 e R$ 4,6 milhões em 2005.

Os números não mentem e sugerem duas hipóteses: ou o governo Lula bobeou e não percebeu que o crime estava se organizando cada vez mais ou simplesmente resolveu sacanear São Paulo porque era governado pelo PSDB. Não tem terceira.

Aliás, na área de segurança Lula foi mal, muito mal. Das cinco penitenciárias de segurança máxima prometidas em campanha - justo no período em que o crime organizado mais se sofisticou -, Lula só entregou uma, e assim mesmo agora, no fim do mandato, concluída na correria. As outras quatro escafederam-se num rabo de foguete e orbitam pelo cosmo, longe das incompreendidas verdades eleitorais.

Mas o governo de São Paulo também tem sua parcela de culpa, além da evidente inabilidade de Lembo para comandar alguma coisa (e muito menos uma crise). Até a semana passada, revelou no último domingo o Estadão, o governo paulista só havia conseguido gastar 5,97% do seu orçamento de investimentos para 2006; e a Secretaria de Segurança Pública só gastou 13,7% do seu orçamento.

Ainda assim, não dá para comparar o que o governo federal (não) fez com o que o governo estadual fez nos últimos quatro anos na área de segurança.

De toda forma, com a porta arrombada, cabe agora aos dois partidos - PT e PSDB - pactuarem um enfrentamento domum, todos juntos, do crime organizado. Ninguém joga mais areia no olho nem xinga a mãe do outro; disputam na campanha, mas se juntam numa solução contra a ameaça maior que paira sobre a Nação brasileira.

E sobre eles, inclusive. Porque se não for assim, não vai ter PT e PSDB para contar a história. Fica só PCC.

Carlos Marchi é repórter de política do jornal O Estado de S. Paulo

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