segunda-feira, julho 17, 2006

Democracia, algumas considerações.



“A democracia é a arte e a ciência de administrar o circo a partir da jaula dos macacos.”
H.L. Mencken (Mencken, foto ao lado, sabia o que estava dizendo)

Um dos méritos da democracia é bastante óbvio: é talvez a mais charmosa forma de governo já criada pelo homem. O motivo não é difícil de descobrir. Ela se baseia em proposições palpavelmente falsas - e o que não é verdade, como todo mundo sabe, é imensamente mais fascinante e satisfatório para a maioria dos homens do que o que é verdadeiro. A verdade tem uma aspereza que os alarma, e um ar de finalidade que entra em choque com seu incurável romantismo. Quando se vêem nas grandes emergências da vida, voltam-se para aquelas velhas promessas, todas falsas mas deliciosamente reconfortantes - e das quais a campeã é a que diz que os pobres herdarão a terra. Esta promessa está tanto na raiz do sistema religioso no mundo moderno como no sistema político em voga. A democracia lhe dá uma certa aparência de verdade objetiva e demonstrável. O homem comum, funcionando como cidadão, tem a sensação de que é realmente importante para o mundo - de que é ele que administra as coisas. Suas lamúrias contra os patifes e os demagogos dão-lhe uma enorme e misteriosa sensação de poder - o que faz a felicidade de arcebispos, sargentos de polícia e outras sumidades. Da democracia, ele extrai também a convicção de que sabe das coisas, de que suas opiniões são levadas a sério pelos maiorais - o que faz a felicidade dos senadores, das quiromantes e dos jovens intelectuais. Finalmente, dela sai também a consciência de um alto dever triunfante cumprido - o que faz a felicidade dos carrascos e dos maridos.

Todas estas formas de felicidade são, naturalmente, ilusórias. Não chegam a durar. O democrata que pula no abismo para bater suas asas e entoar aleluias acaba com o nariz no chão. As sementes deste desastre estão em sua própria estupidez: ele não consegue se livrar daquela ingênua ilusão, tão cristã, de que a felicidade é algo que só se consegue tomando-a de outro. Mas há sementes também na própria natureza das coisas: uma promessa afinal não passa de uma promessa, mesmo quando baseada numa revelação divina, mas as probabilidades de que seja cumprida podem ser expressas por uma deprimente fórmula matemática. Aqui, a ironia que jaz sob toda a aspiração humana revela: a busca da felicidade, como sempre traz, apenas infelicidade no fim das contas. Mas dizer isto é o mesmo que dizer que o verdadeiro charme da democracia não é para as “fuças” do democrata, e sim para a platéia. Esta platéia, me parece, tem a sua frente um show de primeira. Imagine alguma coisa heroicamente absurda: um desfile de cretinices óbvias, ambições grotescas fraudes sem fim! Mas quem se diverte com a fraude? A fraude da democracia é a mais engraçada de todas - mais até, deixando no chinelo a fraude das seitas fundamentalistas (qualquer). Pergunte a seu travesseiro a respeito das invenções democráticas mais características. Ou dos típicos profetas democráticos. Se você adormecer imediatamente por falta de respostas, também não achara a menor graça no dia do Juízo Final, quando os evangélicos pularão do túmulo como pintos de um ovo, asas brotarão de suas omoplatas (não sei se ainda é assim que se chama este osso) e eles alçarão vôo rumo as estrelas piando de felicidade.

Tenho falado até aqui da possibilidade da democracia ser, talvez, uma doença que conheça suas limitações, como o sarampo. Mas é mais do que isto: ela devora a si mesma. Não se consegue observá-la objetivamente sem se impressionar com sua desconfiança de si própria - uma tendência inexplicável a abandonar sua própria filosofia ao menor sinal de tensão. Não é preciso forçar muito a memória para se recordar o que invariavelmente ocorre nos Estados democráticos quando se ameaça a segurança nacional. Todos os grandes tribunos da democracia, em tais ocasiões, respiram fundo e convertem-se instantaneamente em déspotas de uma ferocidade implacável. E nem esse processo se limita aos tempos de terror: continua dia após dia. A democracia está sempre a ponto de matar aquilo que teoricamente mais ama. Todos os seus axiomas como que se resolvem em trovejantes paradoxos, muitos reduzidos a contradições flagrantes. Vejam: “O povo é competente para nos guiar” - desde que possamos vigiá-lo rigorosamente. “Não são os homens que nos governam, mas as leis” - mas são homens sentados em seus banquinhos que decidem o que vira lei e o que não vira. “A função mais alta do cidadão é servir o Estado” - mas a primeira constatação que lhe ocorre, quando tenta cumprir esta função, é a de sua desonra e falta de habilidade. Esta constatação costuma ter suas razões? Então a farsa fica ainda mais gloriosa.

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