domingo, julho 30, 2006

Amorim espalha franquias do MST


Ele passou os últimos 19 anos organizando ações no Nordeste

O principal ponto de encontro de Boa Vista, a capital de Roraima, é uma plataforma com quiosques construída às margens do Rio Branco, a Orla Taumanan. Na semana passada, não se falava de outra coisa por ali: o MST chegou. Depois de se alastrar por 23 Estados, o Movimento dos Sem-Terra iniciou sua aventura amazônica levando cerca de 200 famílias para invadir, no domingo passado, um naco de terra a 30 quilômetros da cidade. Não houve confusão, mas, por via das dúvidas, todo mundo queria saber se poderia estourar um quebra-quebra. Nos bastidores do burburinho, estava Jaime Amorim (foto acima) - percorrendo as redondezas em uma moto vermelha com a diligência de quem inspeciona a implantação de uma nova franquia de multinacional.

Amorim tem 45 anos. É hoje o integrante da direção nacional do MST com maior importância no xadrez expansionista do movimento porque, nos últimos 19 anos, dedicou cada minuto de sua vida à organização de invasões em todos os Estados do Nordeste - e agora começa a avançar pelo Norte. É também uma de suas faces públicas mais radicais. Foi visto nos últimos tempos liderando saques em cidades de Pernambuco; protagonizando confrontos com a polícia que resultaram na morte de um militante; ou soltando frases alucinadas que costuma definir como parte de um "método agitativo" para "despertar as massas".

Alguns exemplos: em Roraima, chegou anunciando que estava ali para "frear o agronegócio". Quando soube do choro de uma cientista que participava das pesquisas desenvolvidas pela Monsanto e destruídas pelo MST, saiu-se com essa: "Se ela fosse séria, não teria se vendido a uma multinacional." E no 2º Forum Social Brasileiro, há dois meses, anunciou: "Não vamos deixar nenhum latifundiário em paz. Ele pode estar em sua casa de praia, mas não vai dormir sossegado, ligando para o caseiro para ver se o cadeado da porteira ainda não foi quebrado."


"PAI, VOCÊ INVADE TERRAS?"

O incendiário líder sem-terra que desbravou a banda de cima do País é torcedor do Corinthians, gosta de ler Jorge Amado e de ouvir músicas de Zé Ramalho. Mas não tem vida além do movimento e de seu ideário.

É casado com Rubineusa, uma educadora baiana também militante do MST. Tem três filhos. O mais velho, de 17 anos, chama-se Raul, em homenagem a Raul Seixas. O segundo, de 10 anos, foi batizado como Marcos, em referência ao zapatista Subcomandante Marcos. E a caçula, de 9 anos, recebeu o nome de Rosa, por causa da mãe de Amorim - e da revolucionária Rosa Luxemburgo.

Amorim mora em Caruaru, em Pernambuco, onde montou o quartel-general do MST para toda a região. Ganha um salário de R$ 600 por mês, há meses em que precisa de ajuda para pagar o aluguel da casa onde mora e recentemente começou a plantar abacaxi, mandioca e macaxeira em um lote de um assentamento para "não perder o contato com a terra".

Quando está em casa, vez por outra convive com o peso de suas convicções. Dia desses, o filho de 10 anos voltou da escola injuriado porque foi xingado pelos colegas: "Pai, é verdade que você invade as terras dos outros?", perguntou. "Expliquei a ele a importância do movimento", conta o dirigente.

O comandante sem-terra também faz seus pequenos boicotes pessoais. Não compra roupas de marca, evita entrar em shopping centers e até usa calça jeans, mas apenas as compradas em feiras livres. Quando está na estrada, nunca abastece o carro em postos Shell ou Texaco. "Pra que, se temos aqui a Petrobrás?" O anticapitalismo levado para a vida comezinha só não resiste à Coca-Cola. "É imperialismo... Mas a bicha é boa, né?"


CABEÇA NO TRAVESSEIRO

Homem importante na hierarquia de um movimento que costuma disseminar a tese de que não há personalismos em sua estrutura, Amorim costuma definir sua atuação com discrição.

"Não existe isso de pessoas muito importantes no MST. Nosso movimento é feito pelas bases", diz. Mas ninguém precisa acreditar nisso. Ele é um dos figurões do Movimento dos Sem-Terra desde a sua fundação, em 1985.

Jaime Amorim é o filho do meio entre os dez de um casal de pequenos agricultores do município de Guaramirim, em Santa Catarina. Freqüentou escola pública e fez faculdade de Pedagogia em Joinville. Teve uma breve passagem pelas Forças Armadas - experiência da qual fala pouco, mas que lhe rendeu uma tatuagem no braço direito que mostra uma caveira e uma cobra entrelaçadas. Depois começou a freqüentar comunidades eclesiais de base e se juntou aos fundadores do MST.

Assim que o movimento foi criado, no norte de Santa Catarina, recebeu a missão de implantá-lo no sul do Estado. Dois anos depois, em 1987, veio o chamado: largar tudo e levar o movimento para o Nordeste. "Tinha 27 anos e fiquei várias noites sem dormir, com a cabeça no travesseiro. Até que aceitei", lembra. Os pais de Amorim não entenderam direito o que ele ia fazer, mas acharam bom vê-lo longe da roça. A primeira parada foi na Bahia. Depois, morou dois anos em Maceió e chegou a Pernambuco em 1992.

De sua base em Caruaru, Amorim depurou maneiras de adaptar a tecnologia de invasões usada no Sul do País ao Nordeste. Acha que se deu bem, em primeiro lugar, porque é de Santa Catarina. "Os gaúchos que vieram queriam impor sua maneira de ver as coisas e acabaram voltando logo. Os catarinas são mais maleáveis." Hoje ele é o detentor de uma espécie de kit MST, usado da metade do País para cima. Na semana passada, com sua chegada a Roraima, era possível ver de perto como fazer invasões, em algumas breves lições.


COMO FAZER UMA INVASÃO

Amorim gosta de filosofar em torno do ato de "cortar a cerca" de uma propriedade. "É um ato capaz de mudar a cabeça de um homem em segundos." Nos Estados do Nordeste e do Norte, as propriedades que terão seus arames arrebentados são escolhidas, no geral, pelo próprio Amorim. Ele fuça na internet as estatísticas sobre o lugar onde pretende fincar a bandeira vermelha do movimento, pega livros, abre mapas e, em seguida, vai até o lugar. Esteve três vezes em Roraima, antes de definir o local que seria invadido. Escolheu uma fazenda que pertenceu ao banco Bamerindus, foi desapropriada pelo Incra e já abriga um projeto de assentamento - para não arrumar brigas feias logo na chegada ao Estado.

Em seguida, deixou na cidade dois militantes que tinham a missão de cadastrar pessoas interessadas em um pedaço de terra e explicar as regras dos acampamentos. De acordo com o movimento, 200 famílias toparam e entraram no cadastro inicial.

Um número menor apareceu na hora da invasão. Já dentro do acampamento, os sem-terra foram distribuídos em grupos de trabalho. Alguns cavavam fossas para servir como banheiro, outros buscavam lenha, mais alguns construíam barracos - e a orientação é fazer o maior número possível de construções, para dar visibilidade ao acampamento.

Amorim estendeu uma rede com mosquiteiro no meio do galpão principal, cozinhou, tomou banho em um igarapé junto com os homens acampados. Na quarta-feira, ficou acordado durante a madrugada para fazer a vigilância do acampamento. Tudo para marcar presença, mas também para garantir uma espécie de padrão de qualidade das invasões com a marca MST.


SAQUES "BONITOS"

A chegada do MST a Roraima foi tão pacífica que os acampados ficaram ao lado de um batalhão do Exército. Até mesmo um coronel da Abin, Gelio Fregapani, passou por lá para fazer uma visita. "Preciso mandar informações para Brasília." Foi um caso raro. Na maioria das vezes, a chegada do MST é rodeada de tensão permanente. Pelas lentes de Amorim, isso acontece porque há casos em que "só uma boa pressão resolve".

Arregimentar pessoas dispostas a ganhar um pedaço de terra e depois encorajá-las a entrar em situações em que o limite entre a pressão e a bandidagem não pode ser visto a olho nu, no manual do invasor elaborado por Amorim, está na lista dos fins que justificam os meios. Pela seguinte lógica: "Os saques a caminhões e mercadinhos feitos em Pernambuco foram um dos momentos mais bonitos do MST... Havia 3 mil famílias acampadas e passando fome, falando em fazer saques. Ou a gente dizia que elas tinham sido derrotadas e deviam ir embora ou entendia o sentimento e as necessidades da base. Essa é a diferença entre ser dirigente e militante. Fizemos os saques, mas depois ninguém ali transformou essa ação política em atitude individual e virou saqueador. Deu para entender?"

Como, na prática, ações políticas e atitudes individuais causam o mesmo efeito, o burburinho criado pela chegada do MST à Orla Taumanam até que não era receio infundado. Como já dizia Amorim, "uma pressão sempre pode acontecer".

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