Há uma famosa definição do hipócrita nos Evangelhos: o hipócrita é aquele que recusa a aplicar a si mesmo os critérios que aplica aos outros. Por tal critério, todos os comentários e discussões sobre a assim chamada Guerra ao Terrorismo são pura hipocrisia, virtualmente sem exceção. Alguém pode entender isto? Não, eles não podem entendê-lo. (Noam Chomsky, Power and Terror [Poder e Terrorismo], 2003)
Noam Chomsky foi o mais proeminente intelectual norte-americano a racionalizar os ataques terroristas da Al Qaeda em Nova Iorque e Washington. As perdas por morte, ele argumentou, foram inferiores em comparação à lista de vítimas no Terceiro Mundo do “terrorismo muito mais extremo” da política externa dos Estados Unidos. A despeito de sua afronta calculada à tendência atual de opinião, este sentimento foi muito bem aceito pela clientela própria de Chomsky. Ele nunca foi tão popular entre os acadêmicos e intelectuais de esquerda como hoje.
Dois livros com entrevistas suas publicadas desde 11 de setembro de 2001 foram diretamente para a lista dos mais vendidos[1]. Um deles foi, desde então, transformado em um filme intitulado Power and Terror [Poder e Terrorismo][2], que vem ultimamente gerando negócios animadores no mercado do cinema de arte. Em março de 2002, o diretor do filme, John Junkerman, levou seu produto à Universidade da Califórnia, em Berkeley, onde, numa visita de cinco dias, Chomsky fez cinco palestras para um público total de não menos que cinco mil pessoas.
Chomsky tem utilizado seu prestígio, originalmente alcançado no campo da lingüística, para tornar-se a voz condutora da esquerda norte-americana. Ele não é um mero orador. Seus pontos de vista contribuíram muito para estruturar a política esquerdista nos últimos quarenta anos. Hoje, quando atores, estrelas de rock e estudantes gritam palavras-de-ordem anti-americanas para as câmeras, eles estão muito freqüentemente expressando opiniões que adquiriram aos poucos a partir da volumosa produção [intelectual] de Chomsky.
Chomsky tem sido um radical famoso desde meados dos anos 1960, quando se projetou como um ativista contra a Guerra do Vietnã. Apesar de perder um pouco de seu prestígio ao final dos anos 1970 e durante os anos 1980, por sua defesa do regime de Pol-Pot no Camboja, ele vem utilizando-se do 11 de setembro para restaurar sua reputação – na verdade, para ultrapassar sua antiga influência e estatura. Aos setenta e quatro anos de idade, ele é hoje o decano da esquerda intelectual dos Estados Unidos e de grande parte do mundo.
Ele é, no entanto, um radical acadêmico não-convencional. Ao longo dos últimos trinta anos, a esquerda nas ciências humanas tem sido cativada pela alta teoria, especialmente pela filosofia neo-marxista, feminista e pós-modernista da Alemanha e da França. Muito desse material [teórico] já era suficientemente enigmático em sua língua original, mas, traduzido, ele elevou ignorância a um símbolo de prestígio. Ele inundou as ciências humanas de relativismo, tanto na epistemologia quanto na filosofia moral.
Contrastando com isso, Chomsky não produziu um corpo substancial próprio de teoria política. E nem é um relativista. Ele advoga a busca da verdade e do conhecimento sobre as relações humanas e promove um conjunto simples e universal de princípios morais. Além disso, seus artigos políticos são muito claros, direcionados a um público mais generalista do que especializado. Ele sustenta suas alegações não com apelos a algum aparato conceitual esotérico, mas com a apresentação de evidências óbvias, aparentemente factuais. A explicação para o seu atual prestígio, portanto, precisa ser buscado não nas tendências intelectuais recentes, mas em algo com uma história mais longa.
Chomsky é o mais eminente resquício intelectual da Nova Esquerda dos anos 1960. Em vários sentidos ele sintetizou a Nova Esquerda e sua aversão pela “Amerika”, um país que ele acreditava, por suas políticas interna e externa, ter se rebaixado ao fascismo. No seu livro mais famoso dos anos sessenta, American Power and the New Mandarins [A potência norte-americana e os novos mandarins], Chomsky afirmava que o que os Estados Unidos precisavam era de “um tipo de desnazificação”.
De todas as maiores potências da época [anos 1960], conforme Chomsky, os Estados Unidos eram a mais condenável. Seus preceitos de democracia liberal eram uma fraude. Sua democracia era uma “ditadura [com mandato] de quarto anos” e seu compromisso econômico de abrir os mercados era um mero disfarce para o poder corporativo. Sua política externa era positivamente uma desgraça. “Sob qualquer padrão objetivo [de análise]”, escreveu ele à época, “os Estados Unidos se tornaram a potência mais agressiva do mundo, a maior ameaça à paz, à autodeterminação nacional e à cooperação internacional.”
Como ativista pacifista, Chomsky participou de algumas das mais famosas manifestações públicas, incluindo a tentativa – muito celebrada no [programa televisivo] Armies of the Night [Exércitos da Noite], de Norman Mailer – de formar uma corrente humana em volta do Pentágono. Chomsky descreveu o evento como “dezenas de milhares de jovens envolvendo aquilo que acreditam ser – devo acrescentar que eu concordo – a mais horrenda instituição nessa terra.”
Esse tipo de anti-americanismo era comum na esquerda daquela época, mas duas coisas fizeram com que Chomsky se mantivesse destacado da multidão. Ele era um estudioso com uma reputação fora do comum e estava sintonizado com o anti-autoritarismo da Nova Esquerda estudantil.
Naquela época, a esquerda tradicional ainda era dominada por uma geração mais velha de marxistas, fossem eles partidários do Partido Comunista ou mesmo trotskistas, que se opunham a Stalin e seus herdeiros, mas que ainda endossavam Lênin e o bolchevismo. De qualquer forma, a geração emergente de estudantes radicais enxergava ambos os grupos [comunistas e trotskistas] como transigentes, em função de seu apoio à Revolução Russa e aos regimes repressivos que ela legou em herança ao leste europeu.
Chomsky não era um membro da geração dos estudantes – em 1968, ele já era um professor universitário estável, com seus quarenta anos de idade –, mas a não-afiliação partidária ou qualquer outra conexão política formal o isentava de qualquer conexão com a velha esquerda. No entanto, sua adesão ao anarquismo, ou ao que ele chamou de “socialismo libertário”, contribuiu muito para moldar a perspectiva da Nova Esquerda.
[O livro] American Power and the New Mandarins cita, com aprovação, o anarquista do século XIX Mikhail Bakunin vaticinando que a versão do socialismo apoiada por Karl Marx terminaria por transferir o poder estatal não aos trabalhadores, mas às estruturas elitistas do próprio Partido Comunista.
Apesar de seu anti-bolchevismo, Chomsky continuou a apoiar a revolução socialista. Ele argumentava que “uma verdadeira revolução social” transformaria as massas, de maneira que elas pudessem tomar o poder em suas próprias mãos e gerenciar elas mesmas as instituições. Seu modelo político favorito da “vida real” foi o curto enclave anarquista formado em Barcelona em 1936-1937, durante a Guerra Civil Espanhola.
A demanda pelo “poder estudantil” dos anos 1960 foi uma conseqüência desse estigma do pensamento político. Ele permitiu que a Nova Esquerda persuadisse a si mesma de haver inventado uma forma mais pura de radicalismo, não corrompido pelo totalitarismo do mundo comunista.
Entretanto, com todo o seu desdém a priori pelo comunismo, no mundo real da política internacional Chomsky mostrou endossar um grupo consideravelmente ortodoxo de revolucionários socialistas. Eles incluíam os arquitetos do comunismo em Cuba, Fidel Casto e Che Guevara, assim como Mao Tse-tung e os fundadores do comunismo estatal chinês. Chomsky disse em um fórum em Nova Iorque, em dezembro de 1967, que na China “pode-se encontrar muitas coisas verdadeiramente admiráveis”. Ele acreditava que os chineses haviam se adiantado no fortalecimento do poder das massas pelos caminhos defendidos em seus próprios [de Chomsky] postulados socialistas libertários:
A China é um exemplo importante de uma nova sociedade em que coisas muito interessantes e positivas aconteceram no nível local, na qual um bom acordo de coletivização e comunização baseou-se de fato na participação das massas e concretizou-se depois que um [certo] nível de compreensão foi alcançado pela classe camponesa, levando a este próximo passo.
Quando forneceu esse endosso ao que ele chamou de [sociedade] “relativamente suportável” e “sociedade justa” de Mao Tse-tung, Chomsky provavelmente ignorava estar falando apenas cinco anos depois do fim da grande penúria chinesa de 1958-1962, a pior da história humana. Ele não sabia, porque a história completa não foi conhecida por mais duas décadas, que a imensa coletivização que ele endossava foi a principal causa dessa penúria, uma das maiores catástrofes humanas de todos os tempos, com o tributo total de trinta milhões de pessoas mortas. Não obstante, se ele estava tão genuinamente afastado do totalitarismo quanto seus fundamentos políticos proclamavam, as pistas do comunismo na União Soviética – que era então largamente conhecida por ter fraudado suas estatísticas de produção agrícola e industrial nos anos 1930, quando sua população estava também sofrendo com safras desastrosas e fome – deveriam ter tornado este anarquista um pouco mais cético quanto às alegações dos ‘companheiros’ dos russos na China.
Na verdade, Chomsky estava bastante consciente do grau de violência que os regimes comunistas vinham impondo corriqueiramente aos cidadãos de seus próprios países. No fórum de 1967 em Nova Iorque ele reconheceu tanto “a carnificina em massa dos proprietários de terra na China” quanto “o massacre dos proprietários de terra no Vietnã do Norte”, ocorridos quando os comunistas chegaram ao poder. Seu objetivo principal, no entanto, era fornecer uma racionalização [justificativa] para tal violência, especialmente a da Frente Nacional de Libertação [National Liberation Front] que então tentava adquirir o controle do Vietnã do Sul. Chomsky revelou que não era pacifista.
Eu não aceito a idéia de que nós só podemos condenar o terrorismo da FNL por ele ter sido tão horrível – e ponto final. Eu penso que nós realmente devemos levantar questões sobre custos comparativos, por mais feio que isto soe. E se vamos nos posicionar moralmente sobre o assunto – e eu acho que devemos fazê-lo – nós devemos perguntar quais foram as conseqüências tanto da utilização do terrorismo quanto da sua não-utilização. Se for verdade que a conseqüência da não-utilização do terrorismo seria que a classe camponesa do Vietnã continuaria a viver na mesma condição que a classe camponesa das Filipinas, então eu acho que a utilização do terrorismo está justificada.
Não foi apenas Chomsky a se envolver na defesa do redemoinho de violência que caracterizou as tomadas comunistas de poder no sudeste asiático. A Nova Esquerda dos anos 1960 quase toda o acompanhou. Eles se opuseram ao lado norte-americano e transformaram Ho Chi Minh e os vietcongues em heróis românticos. Quando o Khmer Vermelho assumiu o Camboja em 1975, tanto Chomsky quanto a Nova Esquerda rejubilaram-se. E quando apareceram as notícias do acontecimento extraordinário que se deu em seguida – a completa evacuação da capital Phnom Penh, acompanhada de relatos de assassinatos aleatórios –, Chomsky ofereceu uma justificativa similar à que havia fornecido para o terrorismo na China e no Vietnã: pode ter havido alguma violência, mas isto é compreensível nas condições de mudança de regime e de revolução social.
Ainda que a informação tenha sido difícil de se obter, Chomsky sugeriu num artigo de 1977 que o Camboja pós-guerra era provavelmente semelhante à França após a liberação ao fim da Segunda Guerra Mundial, quando milhares de colaboradores inimigos foram massacrados em poucos meses. Era de se esperar, disse ele, e foi um preço pequeno a ser pago pelos resultados positivos do novo governo de Pol-Pot. Chomsky citava um livro de autoria de dois norte-americanos de esquerda, Gareth Porter e George Hildebrand, que “apresentaram um estudo documentado detalhado sobre o impacto destrutivo norte-americano no Camboja e o sucesso dos revolucionários cambojanos em contorná-lo, fornecendo um quadro muito positivo de seus programas e políticas”.
Nessa época, no entanto, havia dois outros livros publicados no Camboja que seguiam uma linha bastante diferente. Os autores norte-americanos John Barron e Anthony Paul chamaram seu trabalho Murder of a Gentle Land [Assassinato de uma terra bondosa] e acusavam o regime de Pol-Pot de assassinatos em massa que resultaram em genocídio. [O livro] Cambodia Year Zero [Camboja Ano Zero], de François Ponchaud, repetia a acusação.
Chomsky comentou os dois livros, juntamente com vários artigos da imprensa, no [jornal] The Nation, em junho de 1977. Ele acusava ambos os livros de publicarem um pouco mais que propaganda anti-comunista. Artigos no The New York Times Magazine e no The Christian Science Monitor sugeriam que o número de mortos ficava entre um e dois milhões de pessoas, numa população de 7...8 milhões. Chomsky escarnecia de tal número e implicava com suas fontes, mostrando que algumas delas eram dúbias e que uma fotografia famosa de trabalhos forçados na área rural do Camboja era, na verdade, uma fraude. Ele repudiava o livro de Barron e Paul, em parte por ter sido publicado pela Reader’s Digest e divulgado na primeira página do The Wall Street Journal – ambas publicações notoriamente anticomunistas – e em parte porque eles [os autores] foram omissos em relatar os pontos de vista de jornalistas que estiveram no Camboja mas não testemunharam qualquer execução.
O livro de Ponchaud era mais difícil de ser ignorado. Ele se baseava na experiência pessoal do autor no Camboja desde 1965 até a captura de Phnom Penh, [e em] longas entrevistas com refugiados e notícias da rádio cambojana. Além disso, ele tinha recebido comentários positivos de um autor de esquerda no The New York Review of Books, uma publicação para a qual o próprio Chomsky havia escrito freqüentemente.
A estratégia adotada por Chomsky foi enfraquecer o livro de Ponchaud pelo questionamento da credibilidade de seus testemunhos de refugiados. Reconhecendo que Ponchaud “faz um terrível relato daquilo que os refugiados lhe contaram sobre a barbaridade do tratamento que receberam nas mãos do Khmer Vermelho”, Chomsky dizia que deveríamos ser cuidadosos quanto à “extrema irrealidade dos relatos de refugiados”.
Refugiados estão amedrontados e indefesos, à mercê de forças hostis. Eles tendem naturalmente a relatar aquilo que acreditam que seus interlocutores querem ouvir. Apesar desses relatos merecerem serem seriamente considerados, são necessários cuidado e cautela. Especificamente, refugiados interrogados por ocidentais ou tailandeses têm interesse específico em relatar atrocidades por parte dos revolucionários cambojanos, um fato óbvio que nenhum repórter sério deixará de levar em conta.
Em 1980, Chomsky expandiu sua crítica no livro After the Cataclysm [Após o Cataclisma], em co-autoria com seu antigo colaborador Edward S. Herman. Pretensamente sobre Vietnã, Laos e Camboja, a maior parte do conteúdo do livro era uma defesa do posicionamento adotado por Chomsky frente ao regime de Pol-Pot. Nessa época, Chomsky já sabia muito bem que algo terrível tinha acontecido: “O registro de atrocidades no Camboja é substancial e freqüentemente repulsivo”, escreveu. “Tem-se poucas dúvidas sobre o fato de que a guerra foi seguida de uma eclosão de violência, massacre e repressão”. Ele zombava, no entanto, da suspeita de que o número de mortos tivesse ultrapassado um milhão, e contestava o pedido do senador George McGovern de uma intervenção militar que pusesse fim ao que ele [o senador] denominou “um inquestionável caso de genocídio”. Em lugar disso, Chomsky elogiava autores que desculpavam o regime de Pol-Pot. Ele citava, com aprovação, suas análises de que a marcha forçada da população para fora de Phnom Penh foi provavelmente necessária devido à falência da colheita de arroz em 1976. Nesse caso, escreveu Chomsky, “a evacuação de Phnom Penh, largamente denunciada, à época e desde então, por sua inquestionável brutalidade, na verdade deve ter salvado muitas vidas”. Chomsky rejeitava a acusação de genocídio, sugerindo que as mortes no Camboja não foram resultado de massacre e fome sistematicamente organizados pelo estado, porém mais propriamente atribuível em larga medida a represálias de camponeses, unidades militares indisciplinadas que estavam fora do controle do governo, miséria e doença diretamente decorrentes da guerra dos EUA, ou outros fatores similares.
[O livro] After the Cataclysm também apresentava uma crítica muito mais extensa ao testemunho de um refugiado. Chomsky revelou que sua fonte original, de 1977, para tal [crítica] tinha sido Ben Kiernan, à época um estudante australiano graduado e apologista do regime de Pol-Pot, que escrevia no Melbourne Journal of Politics, publicação jornalística de inspiração maoísta. O que Chomsky evitou dizer a seus leitores, entretanto, foi que bem antes de 1980 – ano em que After the Cataclysm foi publicado – o próprio Kiernan havia se retratado a respeito deste posicionamento. Kiernan tinha passado os anos de 1978 e 1979 entrevistando quinhentos refugiados cambojanos em campos da Tailândia. Eles os persuadiram de que estavam realmente falando a verdade. Ele também obteve inúmeras evidências a partir do novo regime vietnamita empossado. Isto o levou a escrever um mea culpa no Bulletin of Concerned Asian Scholars, em 1979. Este era um jornal de esquerda freqüentemente citado por Chomsky, portanto ele certamente estava a par de que Kiernan havia escrito: “Sem sombra de dúvida, as evidências apontam claramente para um uso sistemático de violência contra a população por parte daquele setor chauvinista do movimento revolucionário que era comandado por Pol-Pot.” Mesmo assim, em After the Cataclysm, Chomsky não reconhece isto em absoluto.
Mais tarde, Kiernan continuou a escrever The Pol Pot Regime: Race, Power and Genocide under the Khmer Rouge 1975–79 [O regime de Pol-Pot: raça, poder e genocídio sob o Khmer Vermelho 1975-79], um livro atualmente referido em larga escala como a análise definitiva de um dos episódios mais pavorosos de toda a história documentada. Durante a evacuação em Phnom Penh, em 1975, dezenas de milhares de pessoas morreram. Quase a totalidade da classe média foi deliberadamente alvejada e assassinada, incluindo funcionários públicos, professores, intelectuais e artistas. Nada menos que 68.000 de um total de 70.000 monges budistas foram executados. Cinqüenta por cento dos chineses urbanos foram assassinados. Kiernan sustenta um total de mortos, entre abril de 1975 e janeiro de 1979, quando a invasão vietnamita derrubou o regime, de 1.67 milhão dos 7.89 milhões de pessoas, ou de 21% da população inteira. Isto representa, proporcionalmente, o maior assassinato em massa jamais infligido por um governo sobre a sua própria população nos tempos modernos, provavelmente em toda a História.
Chomsky era o apologista ocidental mais prestigiado e mais persistente deste governo. Mesmo mais tarde, em 1988, quando Chomsky e Herman foram forçados a admitir que Pol-Pot havia cometido um genocídio de seu próprio povo, no livro Manufacturing Consent [Fabricando Consenso], eles ainda insistiam que estavam certos ao terem rejeitado os jornalistas e autores que haviam primeiramente relatado a estória. As evidências que vieram à tona após a invasão vietnamita em 1979, sustentavam eles, não justificavam retrospectivamente os relatos que eles haviam criticado em 1977.
Eles permaneciam irredutíveis sobre os Estados Unidos – que, segundo eles, começaram tudo – arcarem com a crise da culpa. Em poucas palavras, Chomsky ainda se recusava a admitir o quanto esteve errado quanto ao Camboja.
Chomsky vem persistindo com esse padrão de comportamento até os dias de hoje. Em resposta ao 11 de setembro, ele argumentou que, independente do quanto as ações dos terroristas tenham sido pavorosas, os Estados Unidos já tinham feito pior... E sustentava sua posição com argumentos e evidências tão empiricamente seletivas e moralmente ambíguas quanto aquelas que usava para defender Pol-Pot. No dia 12 de setembro de 2001, Chomsky escreveu:
Os ataques terroristas foram imensas atrocidades. Em escala, eles não devem alcançar o nível de várias outras, por exemplo a do bombardeio do Sudão por [Bill] Clinton sem qualquer pretexto digno de crédito, destruindo metade de seus estoques de medicamentos e matando um número desconhecido de pessoas.
Este incidente no Sudão foi um ataque norte-americano por míssil sobre a fábrica de medicamentos Al-Shifa na cidade de Kartoum, onde a CIA suspeitava que cientistas iraquianos estavam fabricando o agente neurológico VX para uso em armas químicas encomendadas pelo regime de Saddam Hussein. O míssil foi disparado à noite, visando a que nenhum trabalhador estivesse na fábrica e que a perda de vidas inocentes fosse minimizada. A fábrica se localizava numa área industrial e a única baixa aparente àquela hora seria o vigia.
Embora Chomsky tenha atraído críticas por fazer uma comparação tão odiosa, em breve ele poderia “engordar” sua causa. Ele disse a um repórter do [sítio da Internet] “salon.com” que, mais do que um número “desconhecido” de mortes em Kartoum, ele agora tinha estatísticas confiáveis que mostravam ter havido muito mais vítimas sudanesas do que em Nova Iorque e Washington: “Aquele único ataque, de acordo com estatísticas feitas pela Embaixada da Alemanha no Sudão e pela [ONG] Human Rights Watch, provavelmente causou a morte de dezenas de milhares de pessoas.” No entanto, tal argumento rapidamente causou desconfiança. Uma das suas duas fontes, a Human Rights Watch, escreveu ao “salon.com” na semana seguinte negando ter fornecido tal estatística. O diretor de comunicação social [da ONG] afirmava: “Na verdade, a Human Rights Watch não conduziu qualquer pesquisa quanto ao número de baixas civis decorrentes do ataque no Sudão e não faria tal avaliação sem uma pesquisa de campo cuidadosa e completa”.
A segunda fonte de Chomsky também não fez qualquer pesquisa sobre o assunto. Ela era Werner Daum, embaixador alemão no Sudão entre 1996 e 2000, que escreveu para a [revista] Harvard International Review, no verão de 2001. Apesar de seu cargo, o artigo de Daum era qualquer coisa, menos diplomático. Era um longo discurso vastamente anti-americano, criticando os registros de direitos humanos internacionais dos Estados Unidos, culpando os Estados Unidos pela Guerra Irã-Iraque nos anos 1980, acusando-os de ignorar o gaseamento dos curdos pelo Iraque e responsabilizando-os pelas significativas 600.000 mortes de crianças iraquianas em decorrência das sanções econômicas pós-1991. Entretanto, os comentários [deste artigo] sobre as perdas por morte no ataque de Kartoum não eram tão definitivos quanto Chomsky alegava. Daum escreveu:
É difícil calcular quantas pessoas no pobre país africano morreram em função da destruição da fábrica de Al-Shifa, mas várias dezenas de milhares parece um palpite razoável. A fábrica produzia alguns dos medicamentos básicos da lista da Organização Mundial de Saúde, cobrindo 20 a 60 por cento do mercado do Sudão e 100 por cento do mercado de líquidos intravenosos. Foram precisos mais de três meses para que esses produtos fossem substituídos através de importações.
Agora, é difícil levar em conta seriamente o argumento de Daum de que esse “palpite” fosse minimamente “razoável”. Ele disse que houve um período de três meses entre a destruição da fábrica e o momento em que os produtos foram substituídos por importados. Parece um intervalo implausivelmente longo para embarcar produtos farmacêuticos, mas, mesmo se verdadeiro, é estranho sugerir que “várias dezenas de milhares” de pessoas tenham morrido em período tão curto.Se realmente aconteceu assim, [os sudaneses] deveriam ter sucumbido a uma crise médica altamente visível, [a] uma pandemia que colocasse a eclosão da AIDS na sombra. Mas ninguém que acompanhava o assunto de perto, à exceção do embaixador alemão, parece ter ouvido sobre isto.
Ninguém que faça uma busca na Internet das matérias sobre as operações no Sudão de várias agências ocidentais de socorro, incluindo a Osfam, a Médecins sans Frontières e a Norwegian People’s Aid, que vêm operando naquela região desde há décadas, vai encontrar evidências de um aumento incomum da taxa de mortalidade [no Sudão] àquela época. Ao invés disso, a maior preocupação deles na área de saúde, agora e então, vem sendo a forma como o governo muçulmano marxista em Kartoum tem combatido a Guerra civil através de ataques a hospitais civis dos inimigos cristãos no sul do país.
A idéia de que dezenas de milhares de sudaneses tenham morrido em três meses devido à falta de medicamentos é suficientemente pouco plausível por si mesma. Que isso possa ter acontecido sem que qualquer agência de ajuda humanitária tenha noticiado ou reclamado é simplesmente inacreditável. Conseqüentemente, a argumentação de Chomsky sobre os ataques de 11 de setembro [de 2001] é detalhadamente tão fraudulenta quanto sua apologia de Pol-Pot e sua má interpretação do genocídio cambojano.
“É responsabilidade dos intelectuais falar a verdade e denunciar mentiras”, escreveu Chomsky num famoso artigo no The New York Review of Books, em fevereiro de 1967. Esta foi não só uma afirmação bem colocada e memorável, mas também uma boa indicação de seu principal objetivo. A maior parte de sua vida adulta ele dedicou à crítica de outros intelectuais que, segundo ele, não completaram seu dever. O argumento central do [livro] American Power and the New Mandarins é que as ciências humanas e sociais teriam sido aprisionadas por uma nova espécie de intelectuais. Mais do que agir como pensadores socráticos livres, eles teriam traído sua vocação e se tornado servos do estado militar-industrial. Os interesses dessa nova classe de mandarins, afirmava ele, teriam transformado os Estados Unidos numa potência imperial. A ideologia [desses novos mandarins] demonstrava a mentalidade dos funcionários públicos coloniais, persuadidos da benevolência da pátria mãe e a correção de sua visão de ‘ordem mundial’, e convencidos de que ela [a pátria mãe] entende os verdadeiros interesses dos povos retrógrados de cujo bem-estar ela deve cuidar.
Chomsky apontou os campos acadêmicos que considerava os piores criminosos – psicologia, sociologia, análise de sistemas e ciências políticas – e apresentou alguns reconhecidos profissionais liberais, inclusive Samuel Huntington, de Harvard, como entre os piores exemplos. A Guerra do Vietnã, denunciava Chomsky, foi projetada e executada pelos novos mandarins.
Em si mesma, a identificação por Chomsky da emergência de um novo tipo de funcionário público academicamente treinado não era nem original, nem radical. Críticas similares já haviam sido feitas por algum tempo sobre o mesmo fenômeno, tanto na Europa ocidental quanto na oriental. Muito da sua crítica já havia sido antecipada nos anos 1940 em um livro [elaborado pela] outra ponta do espectro político, Road to Serfdom [Estrada para a servidão], de Friedrich von Hayek, o qual identificava as manobras sociais do estado assistencialista como um das maiores ameaças à liberdade ocidental. Chomsky ofereceu uma versão esquerdista da mesma idéia, ao escrever:
Há tendências perigosas, na ideologia da intelligentsia do estado assistencialista, que alegam possuir a técnica e a compreensão necessárias para administrar a nossa ‘sociedade pós-industrial’ e para organizar a sociedade internacional sob a dominação da superpotência norte-americana.
Exatamente na época em que estava fazendo essa crítica, Chomsky estava ele próprio atuando na manobra social numa escala ainda maior. Como ele sinalizou com seu apoio, em 1967, à “coletivização e comunização” das agriculturas chinesa e vietnamita, com seu conseqüente terrorismo e assassinatos em massa, ele vinha buscando a reorganização calculada das sociedades tradicionais. Ao advogar a mudança revolucionária em toda a Ásia, ele também buscava desempenhar um papel na reorganização da ordem internacional.
Assim, exceto pelo fato de ocupar, no espectro político, um espaço muito mais à esquerda do que os acadêmicos que criticava, e apesar de sua preferência por carnificinas ao invés de técnicas mais burocráticas, Chomsky era ele mesmo o típico modelo do novo mandarim que ele pretendia desprezar. Ele era, na verdade, um dos exemplos mais bem-sucedidos do gênero. Hoje já existem análises suficientes da Guerra do Vietnã para demonstrar conclusivamente que os Estados Unidos não foram derrotados militarmente. O Vietnã do Sul foi abandonado à própria sorte devido aos custos políticos internos [nos Estados Unidos] da guerra. A influência de intelectuais radicais, como Chomsky, na persuasão da geração estudantil dos anos 1960 para que se opusesse à guerra foi crucial para que esses custos políticos aumentassem a um nível intolerável.
O resultado que eles ajudaram a produzir, no entanto, foi muito pior do que qualquer solução burocrática que pudesse ter emanado a partir das ciências comportamentais dos anos 1960. Do nosso atual ponto de vista privilegiado, nós podemos hoje ver os resultados de longo prazo da escolha que Chomsky propôs em 1967 entre os “custos comparativos” do terrorismo revolucionário no Vietnã e a continuação da agricultura de iniciativa privada nas Filipinas. Todos os resultados favoreceram o que se passou mais recentemente. Em 2001, a média do PIB per capita nas Filipinas era de US$ 4.000. Ao mesmo tempo, vinte e cinco anos de revolução no Vietnã levaram a um número que é apenas a metade, meros US$ 2.100. Mesmo aqueles vietnamitas que desempenharam papéis importantes na transformação estão agora desapontados com os resultados. O ex-vietcongue geral Pham Xuan Na disse, em 1999: “Toda aquela conversa sobre ‘libertação’ há vinte, trinta anos [atrás], todas as covas, todos os corpos, produziram isto, este país depauperado e empobrecido, comandado por uma gangue de teóricos cruéis e paternalistas semi-formados”. Esses “teóricos semi-formados” eram exatamente os mandarins que Chomsky e seus apoiadores tão ardentemente quiseram que fossem bem-sucedidos, e por cujo estabelecimento trabalharam tão duro.
Tanto quanto aos praticantes e burocratas da ciência social, os outros representantes da intelligentsia a quem Chomsky sempre foi hostil são os profissionais que trabalham na mídia jornalística.
Apesar de seu discurso político tê-lo feito famoso, Chomsky não fez nenhuma contribuição substancial à teoria política. Quase todos os seus livros políticos são coletâneas de ensaios, entrevistas, discursos e matérias jornalísticas de opinião sobre eventos atuais. A única tentativa feita por ele de uma análise mais eficaz foi o trabalho que produziu em 1988 com Edward S. Herman, Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media [Fabricando Consenso: a economia política da mídia de massas]. Esse livro, no entanto, deve ter sido uma decepção para seus seguidores [de Chomsky].
Estudos da mídia são um vasto campo [de pesquisa], estendendo-se desde defesas tradicionais da mídia jornalística como o quarto poder do sistema democrático até a análise cultural mais enigmática produzida pelos teóricos pós-modernistas radicais. Chomsky e Herman não deram qualquer indicação de que tivessem compilado algum desses [tópicos]. Ao invés disso, seu livro oferece uma análise grosseira que estaria ‘em casa’ num velho panfleto marxista dos anos 1930. Com exceção da introdução, a maior parte do livro é simplesmente uma revisão confusa dos trabalhos anteriormente publicados por seus autores criticando a cobertura feita pela mídia aos acontecimentos na América Central (El Salvador, Guatemala e Nicarágua) e no Sudeste Asiático (Vietnã, Laos e Camboja), mais um capítulo relatando a trama KGB-Bulgária para assassinar o Papa em 1981.
Para explicar o papel da mídia de massas, Chomsky e Herman fornecem seu “modelo de propaganda”, que alega que a função da mídia é divertir, entreter e informar, e inculcar nos indivíduos os valores, crenças e códigos de comportamento que os integrarão às estruturas institucionais de uma sociedade mais ampla. Num mundo de concentração de riqueza e maior conflito de interesses de classes, desempenhar este papel requer propaganda sistemática.
Isto é verdade, sustentam eles, não importando se a mídia opera em democracias liberais ou sob regimes totalitários. A única diferença é que, em sociedades comunistas ou autoritárias, é claro para todos que a mídia é instrumento da elite dominante. Nas sociedades capitalistas, entretanto, esse fato é dissimulado, já que a mídia “compete ativamente, periodicamente ataca e expõe malfeitorias corporativas e governamentais e agressivamente se auto-descreve como porta-voz do discurso livre e dos interesses gerais da comunidade.”
Chomsky e Herman argumentam que esses ataques à autoridade são sempre muito limitados e as pretensões de discurso livre são meramente cortinas de fumaça para divulgar [inculcar] as agendas econômica e política dos grupos privilegiados que dominam a economia. Eles apontam que os veículos da mídia pertencem todos a grandes corporações, que ficam sob o controle do faturamento de grandes anunciantes nacionais, que a maior parte do noticiário é gerada por grandes agências multinacionais de notícias, e que qualquer jornal periódico ou canal de televisão que saia fora da linha é bombardeado com ‘artilharia pesada’ – ou cartas, petições, ações judiciais –, sendo que os discursos de instituições pró-capitalistas são estabelecidos com este único propósito.
Existem, entretanto, duas ostensivas omissões na análise [de Chomsky e Herman]: o papel dos jornalistas e as preferências das audiências [de mídia].
Em nenhum lugar os autores explicam como os jornalistas e outros produtores de notícias possam acreditar que estão exercendo sua liberdade de reportar o mundo como o vêem. Chomsky e Herman simplesmente afirmam que essas pessoas tornaram-se viciosas em enxergar o mundo através das lentes da ideologia pró-capitalista. Também não conduzem qualquer análise sobre por que milhões de pessoas comuns exercem sua livre escolha todos os dias de comprar jornais e sintonizar programas de rádio e televisão. Chomsky e Herman falham em explicar porque leitores e espectadores aceitam tão prontamente a visão de mundo dos proprietários da mídia capitalista. Eles não formulam qualquer explanação para os gostos das audiências de mídia.
Essa visão de ambos, jornalistas e audiência, como facilmente manobráveis, ingênuos ideológicos nas mãos dos poderosos, não é apenas uma fantasia produzida por Chomsky e Herman. É também uma instância que revela um desprezo arrogante e paternalista por qualquer pessoa que não compartilhe de suas opiniões políticas. O inerente desdém desse ponto de vista foi revelado durante uma troca [de idéias] entre Chomsky e um examinador durante uma conferência em 1989 (reproduzido em Chomsky, Understanding Power [Entendendo o Poder], 2002):
(Examinador): A única pesquisa que eu vi sobre jornalistas aponta que eles são basicamente narcisistas e esquerdistas. (Chomsky): Olha, o que as pessoas chamam de “esquerdistas” não significa nada – significa que eles são liberais convencionais, e liberais convencionais são muito “dirigidos ao estado”[3]; e são usualmente dedicados ao poder privado.
Em resumo, Chomsky acredita que apenas ele e os que compartilham de sua perspectiva radical têm a capacidade de elevar-se além das ilusões que mantêm todos os outros como escravos do sistema. Somente ele pode ver as coisas como elas realmente são.
Desde o Iluminismo europeu, vários intelectuais proeminentes se auto-proclamaram figuras seculares semelhantes a Cristo, guias solitários das luzes lutando para sobreviver num mundo escuro e corrompido. Esta é a tática que freqüentemente lhes tem valido seguidores dentre estudantes e outros jovens idealistas na adolescência tardia.
O fenômeno tem sido sempre mais bem sucedido quando acompanhado de uma moralidade descomplicada que sua constituição [intelectual adolescente] possa absorver prontamente. Em suas ruminações sobre o 11 de setembro, Chomsky reiterou seus próprios princípios morais aparentemente diretos e simples. Reações aos ataques terroristas, disse ele, “deveriam ir de encontro aos mais elementares padrões morais: especificamente, se uma ação é certa para nós, ela é certa para os outros; e se for errada para outros, ela é errada para nós”.
Infelizmente, assim como sua declaração da responsabilidade do intelectual de dizer a verdade e denunciar as mentiras, o próprio Chomsky tem consistentemente demonstrado inabilidade em suportar seus próprios padrões. Dentre as suas mais provocativas exigências recentes está a de que os líderes políticos e militares norte-americanos sejam julgados como criminosos de guerra. Ele tem constantemente expressado isso no sentido de enfatizar o fracasso dos Estados Unidos em aplicar a si mesmo o que faz aos seus inimigos. Por exemplo, os Estados Unidos julgaram e executaram os líderes remanescentes da Segunda Guerra Mundial da Alemanha e do Japão, mas falharam em julgar seus próprios compatriotas pelo “crime de guerra” de soltar a bomba atômica no Japão. Chomsky argumenta que o bombardeio norte-americano com [bombas] “dams”[4] durante a guerra na Coréia foi “um enorme crime de guerra ... exatamente como o fanatismo racista”, mas a ação foi aplaudida ‘em casa’ [ou seja, nos Estados Unidos]. “Isto apenas uns dois anos depois que eles enforcaram líderes alemães que fizeram muito menos que isso”.
O pior exemplo atualmente, segundo ele, é o apoio norte-americano a Israel:
virtualmente todas as coisas que Israel tem feito, ou seja, que os Estados Unidos e Israel têm feito, são ilegais – de fato, crimes de guerra. E muitos [destes atos] eles definiram como “violações de túmulo”, ou seja, graves crimes de guerra. Isto significa que as lideranças norte-americanas e israelenses deveriam ser levadas a julgamento.
A perspectiva moral de Chomsky segue sendo completamente unilateral. Não importa a magnitude dos crimes cometidos pelos regimes que ele favoreceu, como a China, o Vietnã e o Camboja sob os comunistas, Chomsky nunca demandou que seus líderes fossem capturados e julgados por crimes de guerra. Ao invés disso, ele tem defendido esses regimes por vários anos com o máximo de sua capacidade e empenho, através do uso de evidências que ele já deve ter constatado serem seletivas, falaciosas e, em alguns casos, inventadas.
De fato, se Pol-Pot tivesse sido capturado e julgado num tribunal ocidental, os escritos de Chomsky poderiam ter sido citados como testemunhos de sua defesa. Se acontecesse o mesmo a Osama bin Laden, as justificativas morais de Chomsky no seu mais recente livro – “quase todo crime, um crime na rua, uma guerra, ou o que quer que seja, geralmente traz por detrás de si algo que tenha elementos de legitimação” – poderiam ser usadas para lhe pleitear um abrandamento de sentença.
Esse tipo de moralidade de dupla face forneceu um modelo para os protestos em todo o mundo dos opositores esquerdistas à guerra da coalizão liderada pelos Estados Unidos contra o Iraque. A esquerda vem se inclinando a tolerar os mais horrendos atos de terrorismo de estado pelo regime de Saddam Hussein, mas foi implacável em sua hostilidade à intervenção dos governos democráticos ocidentais visando tanto sua própria segurança quanto a emancipação do povo iraquiano. Isto é hipocrisia escrita com letras garrafais.
A longa história política desse ativista idoso demonstra que padrões dúbios do mesmo tipo caracterizaram toda sua carreira.
Chomsky se auto-declarou um "libertário" e "anarquista", mas defendeu alguns dos regimes mais autoritários e mortíferos da história humana. Sua filosofia política é supostamente baseada no fortalecimento dos oprimidos e na luta das massas, mas ele tem grande desprezo pelas pessoas comuns a quem considera incautos ignorantes [manipulados pelos] privilegiados e poderosos... Ele definiu a responsabilidade do intelectual de perseguir a verdade e denunciar a mentira, mas apoiou os regimes que ele admira [justo] por suprimirem a verdade e perpetrarem falsidades. Ele endossou princípios morais universais, mas os aplicou apenas às democracias liberais ocidentais, enquanto continuava a racionalizar [justificar] os crimes de seus próprios políticos prediletos. Ele é um mandarim que denuncia mandarins. Quando pego fazendo juízos errôneos irresponsáveis e censuráveis, como fez sobre o Camboja e o Sudão, ele jamais admitiu estar errado.
Hoje, a hipocrisia de Chomsky permanece como a medida mais reveladora da lamentável profundidade na qual se afundou o ativismo político de esquerda que ele tanto fez para propagar.
[1] Chomsky, N. September 11; Seven Stories Press, 96 p., US$ 8,95.
Chomsky, N. Power and Terror: Post 9/11 Talks and Interviews; editado por John Junkerman e Takei Masakazu; Seven Stories Press, 144 p., US$ 11,95
[2] As traduções de títulos de livros, filmes e programas televisivos mencionados no texto foram incluídas apenas para dar uma idéia bastante geral ao leitor dos assuntos de que tratam. (N.do T.)
[3] “state-oriented”, no original. (N. do T.)
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