Eu devia ter uns nove anos de idade, na última vez em que esperei um Natal com ansiedade. Lembro perfeitamente que passei várias noites com sono agitadíssimo, sonhando com um determinado carrinho de montar da Revell, que eu queria muito ter nas mãos. Era uma réplica de um MG, pintado de amarelo na caixa que eu via na vitrine da loja, e não sei por que cargas d’água, tive uma vontade imensa de tê-lo, a ponto de ainda me lembrar, 30 anos depois. Mas o meu pai, aquela doce e objetiva criatura, tinha lá um esquema com um amigo dele dono de uma loja de brinquedos, apareceu com algumas bugigangas alternativas e, eu desencanei do carrinho e tive um bom Natal.
Não tenho bronca da festa máxima da cristandade por causa do carrinho de montar que meu pai sonegou, até porque ele era um mão-aberta que sempre me abarrotava de presentes. Deixei de ver graça no Natal quando percebi, com clareza, que só há duas classes de pessoas para quem ele é realmente importante: os comerciantes, que lavam a égua durante o mês de dezembro, e os médicos, que são chamados às pressas para curar o coma alcoólico dos convidados, ou para consertar as caras estouradas nos acidentes pós-porres. No mais, é tudo uma hipocrisia e uma tristeza imensas, disfarçadas por um falso clima de congraçamento familiar, uma alegria postiça e uma comilança obscena, a que nos entregamos, inexoravelmente, enquanto Roberto Carlos gorjeia o seu trinado manjado na tela da Globo e a Ivete Sangalo enche o saco com aqueles especiais pra lá de idiotas.
A tortura natalina já nos apresenta o seu garrote vil no início de dezembro, quando a decoração das lojas, as árvores cobertas de luizinhas e, sobretudo, a publicidade onipresente, dos comerciais de televisão ao mais humilde dos folhetinhos de papel jornal, nos lembram que é tempo de demonstrar amor ao próximo - e desamor ao saldo médio, à poupança, à moderação de gastos. Falar que o Natal se converteu numa orgia comercial é chover no molhado e já não expressa mais o despautério consumista terminal a que vamos chegando. O que importa, nas festas natalinas, não é a comunhão com quem quer que seja, salvo os balconistas de loja, que, aliás, sempre nos atendem a base de coices, assoberbados de trabalho que ficam. “Chover no molhado”, também a propósito, é uma expressão perfeita para ilustrar este último Natal, já que São Pedro se vingou do desvirtuamento do aniversário do Chefe nos enviando seguidos temporais surpresa, que enlamearam tudo, nos encharcaram até os ossos e nos fez entrar pingando nos shoppings da vida. Fora o calor, a população que duplica com os parentes do interior, o trânsito que para de vez, as vagas de estacionamento que jamais são encontradas e outras delícias da vida urbana.
Comprar presentes deveria ser um ato de amor ou, no mínimo, de atenção ao presenteado, cujas características deveríamos observar, para mimoseá-lo com algo realmente de seu agrado. Mas, com a obrigação de comprar dezenas de presentes, num curtíssimo espaço de tempo, como pensar, como escolher, como comparar preços, como fazer um bom negócio? Agoniado com o fracasso certo que implica o consumo natalino, há muito desisti de dar um bom uso ao meu 13º salário e mando ver, queimando cada centavo do meu precioso holerite. Se não posso comprar com criatividade, compro qualidade. Entro na primeira loja, escolho alguma coisa fina e pago sem ver o preço. O presenteado pode até não gostar, mas pelo menos não dirá que eu fui unha-de-fome, como sói acontecer nas melhores famílias, ou em todas, tão logo os parentes se despeçam e cada um volte para casa, sobraçando os seus pacotes.
Mas o pior mesmo é a “festa”. Para começar, a coisa alimentícia vai apenas do peru ao tênder, comidas tão sem graça, tão desinspiradas, que só poderiam mesmo ser escaladas para uma ocasião tão chata. Depois, tem as polêmicas: fazer a ceia antes ou depois da meia noite? Dar os presentes antes ou depois às crianças? Não houve Natal em minha vida em que estas questões transcendentais não fossem exaustivamente enfrentadas, e não dessem em cara feia aos derrotados. Eu, de minha parte, vou enchendo a cara enquanto discutem e geralmente já estou pra lá de Bagdá quando chegam a alguma conclusão. Resolvido tudo, peru traçado, tem a choradeira. É fulano que morreu mês passado, beltrano que está longe, a tia Mariquinha que está com câncer, coitada, e não pôde vir. Sempre tem alguém chorando em noite de Natal, é tão certo quanto a Missa do Galo. E ainda tem os abraços de gente que já não tem nada a ver conosco, que só encontramos nessa festa, que gostaríamos que evaporassem, mas que estão sempre lá, a postos, lembrando que parente é serpente e que só nos livraremos dessa convivência compulsória quando o Criador onipotente nos der o apito final, aleluia.
Você há de dizer: “Ora, se o cara detesta tanto o Natal, por que não se manda para uma cabana nas montanhas, onde não possa ser achado até o ano-novo?” Não adianta. Esteja onde estiver, nos confins do Alasca ou nas pradarias da Patagônia, algum ser vivente, ou um pingüim, uma foca, virá sorridente desejar: “Boas festas!” De modo que é melhor relaxar, comprar uma caixa de whisky do bom e deixar rolar. Talvez algum dia uma alma caridosa decrete que todo ano será bissexto e troque o 29 de fevereiro pelo 25 de dezembro. Nesse dia glorioso teremos, enfim, o Natal mais feliz de todos os tempos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário