terça-feira, novembro 14, 2006

CIVILIZAÇÃO OU BARBÁRIE

A obra prima do espanhol Ortega Y Gasset, “A Rebelião das Massas”, começou a ser publicada em 1926 no jornal madrilenho El Sol.
Nela, ele retrata as vertiginosas transformações do século XX, especialmente o crescimento das massas urbanas, o enfraquecimento do indivíduo, o agigantamento do Estado e antevê suas conseqüências, como o nazismo e o fascismo.
Num momento como o que vivemos no Brasil, em que se percebe claramente uma inclinação para o autoritarismo, haja vista as manifestações populares e oficiais de enfrentamento contra a imprensa livre, é oportuníssima a releitura desse clássico, do qual extraio um sumo saboroso.
CORRUPÇÃO: “O acanalhamento não é outra coisa senão a aceitação de uma irregularidade como estado habitual e constituído, de algo que enquanto se aceita continua parecendo indevido. Como não é possível converter em sã normalidade o que em sua essência é criminoso e anormal, o indivíduo opta por adaptar-se ao indevido, fazendo-se totalmente homogêneo com o crime ou irregularidade que arrasta”.
“No âmbito familiar, tudo, até os maiores delitos, pode ficar no final das contas impune. O âmbito familiar é relativamente artificial, e tolera dentro de si muitos atos que na sociedade, no ar da rua, trariam automaticamente conseqüências desastrosas e iniludíveis para seu autor. Mas o ´mocinho satisfeito´ acredita poder comportar-se fora de casa como em casa, acredita que nada é fatal, irremediável e irrevogável. Por isso acredita que pode fazer o que bem entende”.
HOMEM-MASSA: “O homem seleto não é o petulante que se supõe superior aos demais, mas o que exige mais de si que os demais. A nobreza define-se pela exigência, pelas obrigações, não pelos direitos. (...) O vulgar, ao contrário, não suspeita de si mesmo. Não há modo de desalojar o tolo de sua tolice, levá-lo um pouco além de sua cegueira e obrigá-lo a que contraste sua visão grosseira habitual com outros modos de ver mais sutis. O tolo é vitalício e impermeável. Por isso dizia Anatole France que o néscio é muito mais funesto que o malvado. Porque o malvado descansa algumas vezes; o néscio, jamais”.
“Não que o homem-massa seja tolo. Pelo contrário, o atual é mais esperto, tem mais capacidade intelectiva que o de nenhuma outra época. Mas essa capacidade não lhe serve de nada; a rigor, a vaga sensação de possuí-la apenas lhe serve para fechar-se mais em si mesmo e não usá-la. De uma vez para sempre consagra os vocábulos ocos que o acaso amontoou no seu interior, e com uma audácia que só se explica pela ingenuidade, tenta impô-los por toda parte”.
“Característico em nossa época não é que o vulgar creia ser destacado e não vulgar, mas que proclame e imponha o direito da vulgaridade, ou a vulgaridade como um direito”.
ESTATIFICAÇÃO: “Imagine-se que sobrevém na vida pública de um país qualquer dificuldade, conflito ou problema: o homem-massa tenderá a exigir que imediatamente o Estado o assuma, que se encarregue diretamente de resolvê-lo com seus gigantescos e incontrastáveis meios. Este é o maior perigo que hoje ameaça a civilização: a estatificação da vida, o intervencionismo do Estado, a absorção de toda espontaneidade social pelo Estado. (...) Quando a massa sente uma desventura, ou simplesmente algum forte apetite, é uma grande tentação para ela essa permanente e segura possibilidade de conseguir tudo – sem esforço, luta, dúvida nem risco – apenas ao premir a mola e fazer funcionar a portentosa máquina”.
CIVILIZAÇÃO: “Civilizado é o mundo, seu habitante, porém, não o é: nem sequer vê nele a civilização, mas usa dela como se fosse natureza. Deseja o automóvel e goza dele, mas crê que é fruta espontânea de uma árvore edênica. No fundo de sua alma desconhece o caráter artificial, quase inverossímil, da civilização. A civilização não se sustenta a si mesma. É artifício e requer um artista ou artesão. Como não vêem nas vantagens da civilização um invento e construção prodigiosos, que só com grandes esforços e cautelas se pode sustentar, crêem que seu papel se reduz a exigi-las peremptoriamente, como se fossem direitos nativos”.
“A civilização do século XIX permite ao homem médio instalar-se em um mundo abundante, do qual percebe só a superabundância de meios. Encontra-se rodeado de instrumentos prodigiosos, de medicinas benéficas, de Estados previdentes, de direitos cômodos. Ignora, porém, o difícil que é inventar essas medicinas e instrumentos e assegurar para o futuro sua produção; não percebe o instável que é a organização do Estado, e mal sente dentro de si obrigações. Este desequilíbrio o falsifica, vicia-o. A forma mais contraditória da vida humana é o ´mocinho satisfeito´, que veio à vida para fazer o que bem entende”.

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