quinta-feira, novembro 30, 2006

Cacilda de Jesus Ferreira, 36 anos, agricultora, exemplo moral

Alguns preferem, sei lá, Marilena Chaui. Eu prefiro a agricultora Cacilda de Jesus Ferreira, 36 anos. Sozinha, ela testa os limites da filosofia e da onipotência científica, que se pretende também uma ética. Fiquem com um trecho de sua história, narrada por Brás Henrique no Estadão de ontem: “Marcela de Jesus Ferreira completou ontem oito dias de vida. Desde o seu nascimento (2,5 quilos e 47 centímetros) está num dos quartos da Santa Casa de Patrocínio Paulista, cidade de cerca de 15 mil habitantes na região de Ribeirão Preto. Ao seu lado, a mãe, Cacilda, de 36 anos, reza pela sobrevida da pequena. Os oito dias de vida de Marcela já contrariam vários prognósticos da Medicina. Ela tem apenas uma pequena parte do encéfalo (cérebro), o que adia a sua provável morte. Desde o diagnóstico do quadro de anencefalia (ausência de cérebro), no quarto mês de gestação, Cacilda jamais cogitou a hipótese de interrupção da gravidez (os especialistas evitam a palavra aborto). ‘Sofrer, a gente sofre, mas ela não pertence a mim, mas a Deus, e eu cuido dela aqui’, diz a mãe, católica. ‘Enquanto isso, cada segundo da vida dela é precioso pra mim.’”
Interessante, a mulher que não abortou mesmo sabendo que o bebê era anencéfalo. Eu a chamo de exemplo moral. É claro que não está dito, nem sugerido, que mulheres que, em situação semelhante, optaram pelo aborto são imorais. Eu sempre sou muito duro no trato das questões políticas, mas tomo extremo cuidado para tratar das dores alheias. Faz parte do zelo que tenho pelo indivíduo. A dor de cada um, meus caros, é sempre indivisível.
O que elogiei em Cacilda, o que me comoveu mesmo, é a defesa incondicional que ele faz da vida — mesmo uma vida que insiste em desafiar, vamos ver até quando, tudo o que nos parece razoável e aceitável, como é o caso da de sua filha, Marcela. Quando Cacilda diz: “Sofrer, a gente sofre, mas ela não pertence a mim, mas a Deus, e eu cuido dela aqui. Enquanto isso, cada segundo da vida dela é precioso pra mim”, canta um hino à generosidade, à prudência, ao amor incondicional.
Exalto o princípio dessa mulher, que nos põe para pensar. Acatou o sofrimento certo quando foi advertida da anencefalia no quarto mês de gravidez. Sofrimento que não lhe era imposto por ninguém. Foi um ato de consciência. Não era escrava da vontade de terceiros. E se negou a sê-lo mesmo da palavra que se quer sempre última: a da ciência — insistirei o quanto for necessário: o discurso científico não é uma ética. Mais do que isso: Cacilda, sem dominar certamente os códigos dos discursos morais, nos diz que atenta contra a humanidade estabelecer quais são as precondições que fazem uma vida ser, afinal de contas, uma vida.
Não tarda, e logo aparecerá alguém para, “em nome da razão”, determinar quem merece ou não continuar vivo. É a tentação subjacente quando se debatem temas como eutanásia e ortotanásia. Eu os considero tentações malignas. E porque o são, é claro que os inocentes são os primeiros a cair nas armadilhas. Cacilda está protegida delas pela sua fé, que não mata, não deixa morrer nem justifica a morte. Não se deixou escravizar nem mesmo pelo medo de sofrer.
Cacilda nos protege do terror. Acredito nisso.

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