quinta-feira, janeiro 04, 2007

A ORIGEM DOS PARA-MILITARES NO RIO DE JANEIRO E PARA ONDE APONTA ESTE PROCESSO!

Nos anos 80, quando o tráfico de drogas, no varejo, foi se estabelecendo em favelas cariocas, o processo se deu naturalmente com o "malandro" ou bandido morador da favela, assumindo o comando do ponto, depois chamado de boca de fumo. O tráfico de drogas não pode conviver com outro tipo de delito dissociado dele, pois isso atrai polícia e desestabiliza o ponto. Alguns pesquisadores - de longe - traduziam a paz da favela como se o traficante fosse um Robin Hood local. Avaliação equivocada. O serviço público trazido pelo traficante - nascido e criado na comunidade - foi a eliminação de qualquer outro tipo de delito. No início aplicaram-se regras de punição, como tiro na mão de quem furtou, etc... Delito contra as mulheres e crianças ia até a pena de morte. Escola pública era um santuário. Uma ampla pesquisa realizada no final dos anos 50 mostrava a favela como área violenta e instável por delitos de todos os tipos. O "malandro" era o chefe, mas que só se preocupava com o que lhe interessava. Não era ainda "dono do morro". As bocas de fumo, no início, não eram disputadas porque o mercado estava em expansão.
A razão de fundo das facções de origem - Falange Vermelha, Jacaré, e depois comandos - da forma que conhecemos, foi a generalização do mercado de drogas nas favelas e a diferenciação das taxas de lucro. Com isso gangs disputavam o controle das mais lucrativas ou novas gangs disputavam a entrada no mercado. Isso passou a ocorrer no final dos anos 80. A desestabilização se tornou geral. As gangs estabelecerem -parcialmente - um pacto de não agressão entre elas, e este passou a ser questão de sobrevivência. Com isso as denominações que começavam a surgir tornaram-se funcionais e passaram a significar que gangs agrupadas sob a mesma denominação não poderiam disputar suas bocas de fumo.

A organização dessas facções desenvolveu-se de forma a reduzir os riscos de sua eliminação. Muitos analistas acham que não existe essa organização, pois pensam organização como um ordenamento em organograma com presidente, diretores...Ou se referem às máfias ou à contravenção. O ordenamento para a sobrevivência criou organizações virtuais onde cada gang em torno de uma boca de fumo estabelece com as demais relações básicas de não agressão e progressivamente de fornecimento preferencial de drogas e armas. Nesse sentido a única forma de se manter este ordenamento, onde a cada "soldado do tráfico" morto, sua substituição se dá automaticamente, ou mesmo a própria substituição automática de toda uma gang em torno de uma boca de fumo, é ter um chefe geral virtual. Para isso só pode ser chefe geral quem estiver preso. De outra forma a eliminação da cúpula desmontaria a organização. Mas ter chefe – preso - passou a ser uma necessidade para dar unidade às facções.

A continuidade da ação das gangs e seus "comandos" foi construindo uma lógica análoga a das FARC colombiana. As gerações seguintes foram desenvolvendo a própria atividade como um objetivo em si. E nada mais. Não se tinha, mais, o poder como meta, nos moldes das guerrilhas dos anos 40, 50, 60 e 70. A negociação durante o governo Pastrana descobriu que a mesma era inútil, pois a lógica das FARC não apontava para o poder, mas para o prazer de fazer aquilo que faziam. A lógica dos "comandos" no Rio apontou na mesma direção, estabelecendo um estado de anomia crescente e depois completo. Há a certeza da morte ou da prisão até os 25 anos e a completa banalização da vida e da morte. Nesse sentido nem o sentido da capitalização, como as máfias, existe em geral. Desta forma a eliminação de seus componentes deixou de ter efeito demonstração, pois o medo da morte desapareceu. Isso tornou ainda mais complexa a repressão. A percepção de que as gangs eram indestrutíveis tornou a corrupção uma rotina e - entre vários policiais - eliminou a fronteira entre policia e delinqüente.

Nos anos 90 a universalização do narco-varejo nas comunidades e a generalização das disputas pelas bocas de fumo com uso de armas militares com poder de destruição crescente, foi mudando a lógica dos anos 90. Uma boca de fumo tomada por uma nova gang, trazia para esta favela um "dono de morro" de fora, portanto não mais nascido e criado nela. Com isso os delitos associados ao tráfico de drogas tiveram ampliada a sua latitude, pela desconfiança em relação ao seu entorno. Os traficantes passaram a serem vistos como carrascos nas comunidades. Não tinham mais nenhuma cumplicidade parcial das pessoas. Impunham seu domínio pelo pavor. E assim foi e é até hoje. Criou-se o caldo de cultura para a entrada de grupos de "justiceiros".

A experiência na comunidade Rio das Pedras, de grupos de policiais ativos e inativos, sua própria empresa de vigilância, a base nordestina da favela, e a articulação positiva com seu entorno – rico - na medida que não há crianças da comunidade nas ruas, e a mão de obra local é de absoluta segurança para quem contrata, estabeleceu um novo tipo de paz numa comunidade. As pessoas e empresas locais pagam suas taxas de segurança e se vêem compensadas pelo serviço. A base de legitimação é a radical inexistência de trafico de drogas, incluindo aí a inexistência de consumidores. E a garantia de continuidade. Esse é um tópico básico. A polícia reprime os traficantes de uma certa comunidade, ocupa e dias depois sai. Aqueles que foram "simpáticos" com a policia, na volta da gang são brutalmente eliminados.

A experiência de Rio das Pedras foi se expandindo para as comunidades de Jacarepaguá, comunidade a comunidade. A base de legitimação é o afastamento do tráfico de drogas. Porém mais que isso: é o afastamento do pavor novo implementado. Novas experiências pontuais foram ocorrendo e a reação das comunidades - apesar dos pedágios de diversos tipos - foi melhor que a esperada, na medida que passaram a certeza que a ocupação seria contínua. A descoberta de que o sistema de pedágios acrescido à boa articulação com o entorno, produzia ganhos permanentes para os grupos de para-militares e para a comunidade, ampliando a atratividade dos serviços assistenciais e reduzindo a taxa de desemprego local, esse processo ganhou nova dinâmica e se acelerou, durante 2005 e 2006.

Os para-militares tiveram a habilidade de não se tornar um grupo de segurança à parte. Passaram a ser a própria associação de moradores e com isso a ser parte da comunidade e não serviço de segurança armada apenas.

Paralelamente o mercado "batizado" de cocaína sofreu uma queda em função de alternativas químicas. A classe média consumidora deixou de ir a boca de fumo, pela insegurança e passou a ter fornecedores fora das favelas e através da generalização do delivery por moto-boys. Os comandos se debilitaram. O primeiro sinal disso se deu na Rocinha na Semana Santa de 2005, quando o socialite-chefe do morro local (na boca das bocas, que respondia pela terça parte da distribuição de cocaína numa espécie de atacado do varejo), decidiu não mais pagar a sua quota ao comando vermelho sentindo-se forte o bastante para se tornar independente. A boca das bocas (umas 50 dentro da Rocinha), desestabilizou-se, o bandido - amigo de ricos e intelectuais - foi "entregue" e morto. A estabilidade de 14 anos se foi. Na semana seguinte o prefeito Cesar Maia foi à Rocinha sem segurança e conversou por horas, um a um, com pelo menos mil moradores. Todos (com exceção dos moto-boys e de duas prostitutas) queriam a presença contínua da policia, mas tinham medo no caso de sua saída. Inacreditavelmente a para-ONG Viva-Rio pediu audiência ao secretário de segurança-ex-governador, e exigiu a retirada dos policiais em nome de supostos abusos cometidos. Assim foi e os fatos seguintes falam por si mesmos.

Qual a dinâmica deste processo todo? Sem nenhuma dúvida será o crescimento dos locais controlados por paramilitares a partir daquela transformação do traficante nascido e criado (Escadinha...), por traficante carrasco e o curto circuito nas relações com a comunidade. Os para-militares demonstraram que reprimir o tráfico de drogas nas favelas é tarefa simples sem precisar de "inteligência policial e investigação sofisticada", como se dizia. Com a auto-estima da corporação policial em baixa, e com visão de missão decrescendo, a cumplicidade entre traficantes e policia cresceu. Com isso a lógica de parte da polícia passou a ser a renda. Os para-militares mostraram que a lógica da renda poderia ser resolvida – paradoxalmente - com a eliminação do narco-varejo. E o processo se tornou auto-sustentado.

Desde os anos 90 que os candidatos a vereador e deputado, dos traficantes nas favelas, passaram a ter votação risível sob a proteção da inviolabilidade da urna e, especialmente, depois da urna eletrônica. Mas os candidatos dos para-militares passaram a ter votações expressivas e chegaram às câmaras de vereadores e assembléia legislativa. Em 2006 estima-se em pelo menos 200 mil votos os alcançados pelo apoio dos para-militares nas comunidades, entre os diretamente seus e os que apoiaram.

O que se deve fazer? A resposta é clara e óbvia. A razão da existência dos núcleos paramilitares é o temor ao tráfico de drogas. O que os legitima é eliminar o tráfico de drogas. Desta forma se torna evidente que a polícia deve entrar neste circuito e eliminar o tráfico de drogas das comunidades e ocupá-las com farda, permanentemente. Isso irá tornar o pagamento de pedágio desnecessário e passará a ser percebido como um abuso. Os núcleos para-militares devem ser combatidos não diretamente, mas indiretamente, com a repressão ampla, geral e irrestrita ao tráfico de drogas. Para isso a policia terá que articular esta repressão com um policiamento ostensivo multiplicado na medida que a lógica da renda dos delinqüentes traficantes os levará aos crimes de rua. Como já ocorre. Paralelamente - vide FBI a partir dos anos 30 - ter-se-á que desenvolver um programa interno-externo de auto-estima e sentido de missão, de forma que a renda efetiva não seja só a monetária. Isso já está mais do que demonstrado nos Carabineros de Chile.

É uma tarefa para o governo que entra, que tem tudo para realizá-la, desde que, defina a estratégia certa e opere com sentido de progressividade. Os resultados, a sensação de proteção das pessoas, e a inevitável queda da criminalidade reforçarão a linha de orientação e a auto-sustentabilidade ocorrerá dentro da lei. É esse o caminho e não olhar para um grupo como se olha para o outro, como tantos policiólogos pretendem dentro de uma visão ingênua, se não cúmplice.

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