terça-feira, fevereiro 06, 2007

Déficit comercial dos EUA: mitos e verdades

A revista Veja trouxe recentemente uma entrevista muito interessante com o ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga. Vale a pena ser lida, já que se trata de um dos mais brilhantes e lúcidos economistas brasileiros. No entanto, respondendo sobre a perspectiva de manutenção do crescimento mundial nos próximos anos, ele deixou-se levar pelo lugar-comum: "não vejo sérios riscos em um cenário mais amplo. Mas existem algumas nuvens no horizonte, sobretudo nos Estados Unidos, por causa do enorme déficit na balança comercial e da bolha de preços no mercado imobiliário".

Este diagnóstico sobre a saúde da economia americana, provavelmente inspirado na velha retórica "anti-consumista" da esquerda, acabou virando clichê. Tal qual a "verdade inconteste" do aquecimento global provocado pelo efeito estufa, a cantilena sobre os riscos do déficit comercial norte-americano é repetida, quase todo dia, por formadores de opinião de todas as tendências ideológicas e tomado como verdade absoluta sem que ninguém ouse contestá-lo, malgrado o verdadeiro problema seja outro, como veremos adiante.

Acredito que a origem desse equívoco esteja nas ultrapassadas convenções contábeis internacionais, que ainda registram os investimentos separadamente das exportações e importações de produtos e serviços. Essas convenções criam a falsa impressão de que o déficit comercial é um desequilíbrio econômico, quando, na verdade, ele esconde o fato de que a economia (americana) é forte e atrativa, pois a sua contrapartida são maciços e incessantes investimentos estrangeiros naquele país. Ao contrário da balança comercial, o balanço da conta de investimentos é altamente superavitário nos Estados Unidos. Em outras palavras, os alienígenas costumam alocar mais dinheiro naquele país do que os ianques remetem para o exterior.

Quando chineses, japoneses, coreanos, alemãs, brasileiros e outros povos vendem seus produtos aos norte-americanos, recebem dólares em pagamento. Se todos gastassem os seus dólares comprando produtos ou serviços nos EUA, não haveria déficit ou superávit na conta comercial. No entanto, não é isto o que acontece normalmente. Boa parte dessa receita, convertida pelos estrangeiros em poupança, acaba investida dentro do próprio território americano, na forma de fábricas, imóveis, ações de empresas, ou títulos de renda - públicos e privados. Resumindo, a contrapartida do déficit comercial é uma infinidade de (pequenos e grandes) investimentos, quase sempre na mesma proporção - já que no mundo globalizado de hoje, ninguém deixa dinheiro parado sob o colchão. Como bem disse o economista Robert Murphy, "isto não é teoria econômica, mas mera evidência contábil".

Embora os investimentos dos estrangeiros não sejam contabilizados como bens ou serviços convencionalmente classificados na conta de comércio, eles são aplicados na compra de outros ativos, dentro dos Estados Unidos, o que valoriza o patrimônio (ações de empresas, imóveis, etc.) dos diversos agentes econômicos e, principalmente, ajuda a aumentar os índices de produtividade dos trabalhadores americanos. Como um moto-perpétuo, esse aumento do patrimônio e da produtividade renova a capacidade dos cidadãos daquele país para comprar mais produtos e serviços, talvez os mesmos produtos e serviços que os estrangeiros deixaram de comprar para investir a sua poupança nos EUA.

Alguém poderia argumentar que seria melhor que a poupança e o investimento partissem de cidadãos americanos e não de estrangeiros. Isso é pura xenofobia, sem qualquer amparo na teoria econômica. O que é importante é o volume de investimentos realizados, que aumentam a produtividade, o nível de emprego, enfim, o padrão de vida da sociedade, e não a nacionalidade de quem os realiza. Qual a diferença, em termos econômicos, afinal, se uma família de imigrantes chineses abre uma pastelaria num subúrbio da Pensilvânia ou se a mesma pastelaria é uma empresa pertencente a americanos? Que diferença faz se o capital da nova siderúrgica da Gerdau pertence a brasileiros ou se um novo poço de petróleo no Golfo do México é propriedade da Petrobrás?

Em termos econômicos, o que realmente importa ao processo de geração de riqueza é a disponibilidade de poupança e, conseqüentemente, de novos investimentos. Os números da balança comercial não disponibilizam esta informação, já que não revelam os detalhes de milhões de transações ali embutidas mas apenas a síntese, em termos monetários, das trocas mercantis realizadas com o exterior. Em outras palavras, eles descrevem quanto de dinheiro um país gastou comprando mercadorias de outros países e quanto ele recebeu pelas vendas que realizou para o exterior. Quanto mais complexa é a economia do país, menos informações úteis podem ser derivadas da análise do seu balanço de pagamentos.

Vejamos um exemplo prático: uma determinada empresa americana vendeu produtos de consumo final ao Japão, no valor de US$ 1 bilhão. Dentro do mesmo exercício, o Conselho de Administração daquela mesma Cia resolveu construir uma nova fábrica e, para tanto, adquiriu máquinas, ferramentas e equipamentos japoneses, no valor de US$ 2 bilhões. A análise do balanço de pagamentos mostrará que as duas operações geraram um déficit comercial da ordem de US$ 1 bilhão para os EUA. Mas, o que ocorreu exatamente? Na verdade, os dois bilhões de dólares pagos aos japoneses nada mais são do que poupança de cidadãos americanos transformada em bens de capital (investimento), através de uma aquisição comercial. Os números frios da conta de comércio não mostram esta realidade, mas apenas que houve um "déficit".

Como se pode ver, no confuso debate econômico de hoje – extremamente influenciado por vieses ideológicos - prevalece um grande paradoxo: déficits comerciais são considerados nocivos, enquanto investimentos estrangeiros são vistos como benéficos, ainda que esses dois fatos contábeis estejam intimamente correlacionados. Pelo mesmo raciocínio, superávits comerciais são idolatrados por economistas, jornalistas, donas-de-casa, empresários, ministros, profissionais liberais, camelôs e outros opinantes menos cotados, ainda que eles representem a "exportação" de poupança nacional.

Eu concordo com Von Mises e Roberto Campos, dentre outros, que estatística pode ser algo extremamente enganador. No entanto, não posso deixar de especular que, comparativamente aos demais países desenvolvidos, os países que mantêm déficits comerciais em suas contas, especialmente os anglo-saxões, têm levado enorme vantagem em termos de crescimento econômico nos últimos anos e décadas.

A propósito, o professor Walter Willians divulgou recentemente alguns dados bem interessantes sobre o tema, especialmente no sentido de desmentir a velha falácia de que os famigerados superávits comerciais são saudáveis para o crescimento econômico e, conseqüentemente, para a geração de empregos. Segundo ele, a economia norte-americana criou, desde 2001, nada menos que 9.3 milhões de postos de trabalho enquanto, no mesmo período, o Japão criou 360 mil e os países da Zona do Euro (exceto Espanha e Reino Unido) criaram 1.1 milhão. A coisa fica ainda mais interessante quando somos informados de que Espanha e Reino Unido criaram 3.6 e 1.3 milhões de empregos respectivamente (individualmente mais, portanto, do que todos os outros europeus juntos), sendo que esses dois países são os únicos da U.E que mantêm, sistematicamente, déficits comerciais em suas contas.

Resta ainda analisar um último argumento muito utilizado quando o assunto são déficits comerciais. Trata-se da possibilidade de que uma parcela deles possa transformar-se em dívida externa. Como vimos antes, o fato contábil do déficit em si não resulta necessariamente em aumento do estoque da dívida, desde que a sua contrapartida sejam investimentos diretos em bens de capital, ações, imóveis ou simplesmente o entesouramento das diferenças. Entretanto, nada impede que parte da moeda local em mãos alienígenas retorne ao país através de operações de crédito. Numa economia aberta, se forem transações entre agentes econômicos privados, elas serão equivalentes a qualquer outra operação financeira entre residentes, onde os riscos, lucros e perdas dizem respeito, exclusivamente, às partes envolvidas. O grande inconveniente está no fato de que a oferta abundante de crédito acaba abrindo o apetite do mais pródigo e voraz tomador de recursos: o Estado. Um ente que, ao contrário dos demais agentes econômicos, não produz riqueza, mas apenas consome uma parte de tudo o que a sociedade produz e, não satisfeito, ainda a torna fiadora de suas dívidas, cuja liquidação exigirá, mais cedo ou mais tarde, pesados sacrifícios de todos.

Ora, dirão os mais afoitos, então o déficit comercial é um problema! Não, meus caros, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, as dívidas não surgem simplesmente porque há oferta de crédito - assim como os acidentes automobilísticos não são causados pela produção e venda de carros. A dívida pública, lá como aqui, só existe porque os governos (sempre eles!) são normalmente perdulários, ineficientes e gastam mais do que arrecadam, seja com programas sociais, seja com a guerra contra o terrorismo, seja com a previdência social, seja com que diabo for. E isto não tem qualquer relação com o comércio exterior.

Nenhum comentário: