terça-feira, outubro 28, 2008

O país vai às urnas dividido

No dia 4 de novembro John McCain e Barack Obama farão um duelo. Em jogo estão dois modos diferentes de conceber a sociedade e a dignidade da pessoa

Tente imaginar um país no qual quase 80% da opinião pública vive na convicção de que o governo está andando na direção errada. Um lugar onde as famílias estão cheias de dívidas, o desemprego chega a 6,1%, os impérios financeiros que dominaram a cena por décadas caem como varetas de jogo e os cofres públicos apresentam um rombo de 500 bilhões de dólares. Uma nação há anos empenhada em duas guerras nas quais já morreram mais de 4700 rapazes fardados e deixaram outras dezenas de milhares aleijados ou psicologicamente instáveis. Num país assim, quando chega o momento do voto, parece normal esperar-se que o partido que governou até agora não tenha nenhuma possibilidade de continuar no poder.
Porém, as coisas nunca são assim tão simples quando se trata dos Estados Unidos da América.
As eleições presidenciais de 2008 nasceram com a idéia de que o único desafio que contava fosse o da indicação (nomination) do candidato dos Democratas. Após oito anos de administração Bush, com um presidente descendo aos menores índices de popularidade, os Republicamos, em 2007, empreenderam o caminho em direção ao voto com o toque de retirada dos vencidos. As eleições de novembro de 2006 fizeram-lhes perder vertiginosamente o controle do Congresso e o país parecia fadado a um sólido domínio de longo tempo dos Democratas. Em suma, o assunto parecia que devesse se resolver na disputa entre Hillary Clinton e Barack Obama. Mas, ao contrário, a América vai às eleições em 4 de novembro surpreendendo o mundo mais uma vez.
A primeira surpresa foi feita pelos Republicanos ao escolher, na pressa, seu candidato no início do ano e confiando-se a um personagem incômodo. Um bastião do partido que foi uma espinha no flanco de George W. Bush e do establishment do partido e que, ao final, viu-se assumir a tarefa de salvar a barca republicana que afunda. John McCain, o herói do Vietnã, que sobreviveu a cinco anos de torturas nas prisões de Hanói, estava politicamente morto no verão de 2007. Aos 72 anos, ao contrário, viu-se no dever de lutar a batalha mais importante da vida.
A segunda surpresa veio dos Democratas que decidiram escrever uma página da História ao confiar, pela primeira vez, a nomination a um candidato negro, de nome e pedigree insólitos, com uma experiência de política nacional angariada em apenas alguns anos na bancada do Senado. Obama atropelou a máquina da guerra da premiada firma Hillary & Bill Clinton com o carisma, a oratória e a capacidade de inspirar milhões de americanos.
A terceira surpresa foi o gesto audacioso e temerariamente genial de McCain de ir pescar no Alasca um rosto ainda mais novo e mais jovem do que o de Obama, muito feminino, para ter como seu vice. Sarah Palin chegou de repente, como um furacão de categoria “5” sobre a campanha eleitoral faltando apenas dois meses para as urnas.
A quarta e última surpresa é o resultado das três primeiras. Apesar do enorme movimento popular em torno de Obama e, apesar do fato inegável de que as coisas não vão bem na América, o país vai votar em 4 de novembro, num cenário que repete mais uma vez a divisão, já vista em 2004 e em 2000. Duas Américas voltam a confrontar-se nas urnas, duas visões diferentes da sociedade, dois projetos políticos opostos. A queda da Wall Street e a crise econômica na qual os EUA se precipitaram há um mês do dia das eleições deram novo fôlego aos democratas, mas sem resultar em um golpe de sorte para a opção de McCain, como pode parecer inevitável.
Seja como for que termine, dois veredictos já foram pronunciados. O primeiro é que as eleições de 2008 serão lembradas como aquelas da “mudança”. Pode ser a mudança proposta por Obama, de tons quase messiânicos, capazes de entusiasmar principalmente os jovens, os intelectuais, as grandes realidades urbanas. Ou pode ser a mudança de McCain, baseada na idéia de que se pode ser conservador em tantos aspectos e também agitar a realidade de Washington atacando os gastos públicos, os lobbies e a burocracia, também com a ajuda de um toque de populismo. E com a novidade trazida por uma “mãe comprometida com a política” que chega, da última grande fronteira americana.
Um segundo veredicto é que, ainda que os Democratas conquistem a Casa Branca, de qualquer modo e num nível mais profundo, este ano já está perdido. Se num ano de mau humor como é 2008, por todas as razões citadas, o eleitorado vai ao voto ainda dividido em dois como estava, há oito anos, significa que mesmo com os danos que tenha causado a administração republicana, os americanos não confiam em colocar as chaves da casa nas mãos do partido que foi de Roosevelt, Truman e Kennedy. Não ficam tranqüilos em saber que a Casa Branca, o Congresso, a Corte Suprema e boa parte dos juízes federais, o FED e as agências de controle sobre Wall Street se tornem, de um momento para outro, liberal. É este um dos elementos de reflexão que ficam para analisar depois da virada de 4 de novembro, seja quem for que vença.
No fundo, quando se olha os programas dos candidatos, enquanto falam entre si de mudança, ambos apressam-se a levar a Washington as receitas habituais das respectivas tradições políticas. Com Obama, os Estados Unidos terão um presidente determinado a dar um papel maior ao governo no ditar as regras do jogo; um maciço uso do dinheiro público (e conseqüente maior pressão fiscal sobre os contribuintes) para oferecer rede de apoio para frente de assistência de saúde e de previdência; uma maior sensibilidade aos temas ambientais e às disposições para limitar o impacto das atividades do homem sobre o planeta. Em política externa, os Estados Unidos privilegiam o soft power, o diálogo, o comprometimento da comunidade internacional nas escolhas e a tentativa de resolver as crises à custa de conferências de paz. Com McCain, as escolhas políticas dominarão baseadas em cortes fiscais e incentivos às empresas; o estímulo à concorrência e à iniciativa privada também nas áreas de saúde e previdência; o sustento ao livre comércio e as limitações ao fluxo de imigração; a corrida à busca de fontes de energia no território americano e à construção de centrais nucleares. No plano internacional, a América de McCain enfrentará seriamente a Rússia e a China, procurará agir além da ONU e das atuais organizações internacionais, considerando-as ultrapassadas e privilegiará um eixo com a OTAN e a União Européia para enfrentar as ameaças que possam vir do mundo islâmico.
Ambos os presidentes não mudarão uma vírgula na posição de apoio a Israel, no Oriente Médio; ambos terão em mira o Irã; ambos farão pressão (ou algo mais) sobre o Paquistão para tentar resolver a situação do Afeganistão. E ambos, ainda que de maneiras diferentes, evitarão diminuir demais a presença militar americana no Iraque.
Vista assim, a situação parece oferecer alternativas claras e, ao mesmo tempo, garantias de continuidade. E pareceria claro que, se existe insatisfação pela receita destes anos dos Republicanos, é a vez dos Democratas tentarem dirigir.
A prudência dos EUA em dar a carta branca diz, portanto, alguma coisa a mais e diferente. E a chave de leitura é procurar na visão do valor da pessoa que emerge das duas frentes. O modelo de sociedade oferecido pelos Democratas não convence, e não apenas em relação à dolorosa questão do aborto. O relativismo cultural que emerge nas escolas, nas universidades, assim como nas assembléias locais onde se dá sinal verde ao matrimônio gay não é percebido como um “progresso” por uma grande fatia, ainda que majoritária, da sociedade americana. Um povo que vive uma fase de redescobrimento da espiritualidade e lota, aos domingos, mega-igrejas evangélicas de quinze mil lugares, ao mesmo tempo não aceita ver ridicularizada nenhuma exigência de busca da verdade.
Milhões e milhões de famílias, em resumo, não estão de acordo com a idéia de que a sociedade perfeita seja aquela pensada nos loft de Manhattan e nos studios de Hollywood. E o demonstram aos outros com a explosão de entusiasmo que acompanhou a chegada à cena da desconhecida mãe do Alasca, com o filho Down nos braços, que se divide entre usar o Blackberry e amamentar, e propõe um tipo de feminismo que enraivece quem fez do feminismo uma profissão. Como nos anos passados, resta assim o cenário de um país dividido em dois, que não são necessariamente aquelas divisões por linhas de demarcação econômicas, como muitos se apressam em dizer simplificando demais as coisas em América dos “pobres” e dos “ricos”. Pode até ser uma divisão geográfica (a América progressista que se depara com dois oceanos e aquela conservadora do interior), mas a realidade é mais profunda e complexa. Diz respeito à dignidade da pessoa e ao tipo de sociedade que se quer construir. Definitivamente, é uma questão, se poderia dizer, “de valores não negociáveis”.

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