quarta-feira, agosto 09, 2006

Texto de Arnaldo Jabor

"Quem é você?, gritou o presidente Lula. "Eu sou o Mesmo!", respondeu a voz.
No fundo do corredor do Palácio da Alvorada, uma massa nebulosa girava sobre si mesma, como um fantasma bailarino.
Dona Marisa já dormia, Brasília também.
Já é tarde da noite, não há ninguém aqui... Quem é você?", gritou o presidente para a nuvem.
"O Mesmo, o Mesmo!", respondeu o abantesma.
Lula pensou: "É um pesadelo..."
A voz adivinhou : 'Não sou um sonho. Sempre estive aqui, esperando. Eu estive aqui
com Collor, estive com FHC. Agora com você... Eu volto sempre. Eu sou o Mesmo..."
O fantasma tinha vagos contornos humanos, rostos mutantes, olhos bigodes em meio à névoa.
"Que você quer de mim?, balbuciou Lula, com os gelinhos do uísque tilintando em seu copo.
Eu vim aqui lhe agradecer, pois você já chegou onde eu quero: no mesmo, no mesmo...
Quero te saudar porque já tive medo de você... como uma Regina Duarte do além...
Eu
achei que seu governo ia mudar o País, me senti ameaçado, acreditei que havia um resíduo ético nos petistas e que você detinha um grão de romantismo idealista. Achei que iam aprofundar as mudanças democráticas, fiquei com medo que você aperfeiçoasse o Plano Real, fizesse reformas no Estado, cortasse despesas, etc... E aí, eu tremi de medo dentro do meu pântano, saí de meu torpor, farejei o ar, inquieto, mas agora estou calmo. Graças a Deus, você só teve a esperteza inercial de manter a política do FHC com o Palocci, mas não mexeu em nada, não mudou nada e foi organizando esta zorra, esta bela congestão institucional que temos agora, que coroa minha volta triunfal. Eu estava dormindo há muito tempo no bolso do jaquetão do Sarney e, agora, saí aliviado".
"Mas eu sou o povo no poder, eu sou o novo!"
Que novo, presidente... (e a massa girava com um ruído de gargalhadas) que novo...?
Você... perdão... o senhor é um alpinista social, o único pobre que subiu na vida nesse governo, o senhor era a esperança popular e agora é só um símbolo vazio...
Quando eu
vi a fome dos petistas invadindo o Estado como uma porcada magra no batatal, quando eu vi que não havia programa, Deus seja louvado, que vocês se perdiam em discussões vazias e não sabiam administrar nada... eu sosseguei..."
"Mas eu vou ser reeleito..."
"Tomara, presidente... Aliás, voto no senhor... E sua reeleição será uma bela vitória do atraso nacional, apoiado por massas que não entendem o que o senhor significa e pelos intelectuais que não conseguem se livrar de seu feitiço...!"
"Por que eles me amam tanto?"
"Eles são fascinados por suas sagrada ignorância, sua carinha barbuda, porque você aplaca sua má consciência, porque você é um conceito que eles não conseguem superar: um vago populismo estatista com tintas socialistas... O senhor é a tara dos intelectuais... E eu só tremi de novo quando surgiu o Roberto Jefferson. Aí, eu entrei em pânico dentro do jaquetão do Sarney: "Pronto! O povo vai descobrir a verdade! E eu, o atraso endêmico, eu, o Mesmo, serei desmascarado!"... Mas você foi perfeito... Aliás, que grande ator você é, presidente!"...
Os mensalões lhe batiam como insetos, os sanguessugas mamavam, as cuecas inchavam e você conseguiu segurar tudo no mais grandioso cinismo, como um Ademar, um Quércia... Juro: eu fiquei com orgulho quando você declarou que não sabia de nada..."
"Ah... bondade sua..."
"Claro que não é, foi só você que fez meu jogo... Quando pintou a verdade do Jefferson, o sistema todo se agitou e me defendeu - a paralisia dos tribunais oportunistas me defendeu, a sordidez dos deputados me defendeu absolvendo criminosos, os voto secretos corporativos, os depoimentos cínicos, o Severino, todos me defenderam contra o mundo que Jefferson revelou e eu respirei de novo, vendo que tudo continuaria como sempre foi..."
"E, hoje, temos um País deprimido e impotente para reagir, assistindo ao maravilhoso festival de mentiras, onde nada de bom acontece nem consola; em suma, um País perfeito para mim, pegajoso, inviável para sempre... Vocês conseguiram paralizar o progresso que se anunciava: a moralização política, um funcionamento republicano e democrático. Você revigorou o personalismo populista de um getulismo tardio que vem aí... Parabéns..."
"No seguno mandato... eu..."
"Vai fazer o quê, no segundo mandato? Contrariar o PMDB. o Calheiros, o Sarney?... Ora... presidente... V. Exa. não tem vocação para o martírio... Você... O senhor é jeitoso, sabe nadar no pântano, ao contrário do Collor que queria ser banido. Aliás, seu governo e o do Collor são parecidos: só que você substituiu um PC do Collor por uma matilha de PC´s. O senhor é um Collor do povão, e por isso ninguém tem coragem de lhe impinchar; e olha que o Collor saiu por muito menos, hein, na boa, na moral, presidente, desculpe..."
"Como assim?"
"Assim como os comunas acham que os fins justificam os meios, o senhor pensa: "Eu justifico os meios!" O senhor quer ser eleito acima dos poderes e gostaria de ser
um Chaves cordial, um Chaves aceito pelos bancos, pelo Bush... O senhor vai substituir o atraso travestido de novo, um programa que será um vago ensopadinho de slogans, populistas com estatismo inchado e falido. E no seu segundo governo, vai crescer o quisto sebáceo do empreguismo, do aparelhamento do Estado-mamãe, com os 40 mil cargos os petistas que jamais largarão essa boca... Você é meu herói!..."
"E você? Quem é você?"
Eu sou o orgulho de não ter sentimentos, sou a inércia primitiva do Brasil. Tenho a grandeza da vista curta, a beleza dos interesses mesquinhos, tenho a sabedoria dos
porcos e das toupeiras. Eu sou aquilo sem nome que transforma tudo que é público em privado. Eu não sou uma mosca na sopa do País, não. Eu sou a sopa brasileira".
Dito isso, a coisa parou de girar e sumiu como um pequeno tornado no fundo do Alvorada.

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