TRECHOS de artigo publicado no caderno MAIS da Folha de São Paulo.
O valor da notícia
JÜRGEN HABERMAS (1929) é um dos principais filósofos e sociólogos vivos. Colaborou entre 1955 e 1959 com Adorno e Horkheimer no Instituto de Pesquisa Social, em Frankfurt, e lecionou nas universidades de Heidelberg e de Frankfurt. Entre suas obras de maior impacto traduzidas para o português estão "Mudança Estrutural na Esfera Pública", "Direito e Democracia" e "Consciência Moral e Agir Comunicativo" (Tempo Brasileiro). Este texto foi publicado originalmente no jornal alemão "Süddeutsche Zeitung". Tradução de Samuel Titan Jr.
01. A crise dos jornais, desencadeada no começo de 2002 pelo colapso do mercado publicitário, ficou para trás - no "Süddeutsche Zeitung" e em outros órgãos de imprensa da mesma dimensão. Apesar da concorrência digital e dos novos hábitos de leitura, os lucros vêm aumentando.
Deixando de lado a boa conjuntura econômica, os lucros se devem, sobretudo a medidas de racionalização com impacto direto sobre o desempenho e a margem de manobra das redações. Notícias bombásticas à maneira do jornalismo norte-americano ditam a tendência atual.
02. Há três semanas, o "Die Zeit" voltou à carga, falando de um "ataque de Wall Street à imprensa dos EUA". O que há por trás desse tipo de manchete? Certamente, o temor de que os mercados não façam justiça à dupla função que a imprensa de qualidade até hoje desempenhou: atender à demanda por informação e formação, sem comprometer taxas de lucro aceitáveis. Mas os lucros em alta não serão uma confirmação de que jornais "enxutos" satisfazem melhor os desejos de seus consumidores?
03. A imprensa terá o direito de, sob o pretexto da "qualidade", cercear a liberdade de escolha de seus leitores? Por que forçar a leitura de reportagens áridas em vez de "infotainment" [fusão, em inglês, das palavras "information" e "entertainment", informação e entretenimento], comentários objetivos e argumentos circunstanciados, ao invés de encenações apelativas de personalidades e acontecimentos? A objeção que se manifesta nessas questões se baseia na suposição polêmica de que os consumidores escolhem com autonomia, segundo suas preferências pessoais. Pois essa mercadoria a um só tempo atende e transforma as preferências de seus consumidores.
04. Mas, quando se interessam por um programa político ou cultural, quando recebem a "bênção matinal realista" da leitura de jornais, todos se expõem - com alguma medida de autopaternalismo - a um processo de aprendizado de resultados imprevisíveis. No curso de uma leitura, novas preferências, convicções ou juízos podem se formar. Pensava-se que a produção e o consumo de programas televisivos podiam ser deixados inteiramente a cargo do mercado. Desde então, as empresas de comunicação cuidam de fornecer programas para seus espectadores enquanto vendem a atenção do público a seus anunciantes. Sempre que imperou sem peias, esse modo de organização causou danos políticos e culturais.
05. O sistema "híbrido" de televisão [na Alemanha] é uma tentativa de remediar o mal. E as leis locais, as decisões de tribunais federais e os princípios de programação das emissoras públicas refletem a noção de que as mídias eletrônicas não devem satisfazer apenas as necessidades mais comercializáveis dos consumidores. Ouvintes e espectadores não são apenas consumidores, mas também cidadãos com direito à participação cultural, à observação da vida política e à voz na formação de opinião. Com base nesses direitos, não é o caso de deixar programas voltados a tais necessidades fundamentais da população à mercê da conveniência publicitária ou do apoio de patrocinadores.
06. A imprensa de qualidade desempenha um papel de "liderança": o noticiário político do rádio e da televisão depende em larga escala dos temas e das contribuições provenientes do jornalismo "argumentativo". Suponhamos que uma dessas redações caia nas mãos de investidores que trabalham com lucros rápidos e prazos curtos: a reestruturação e o enxugamento nesses lugares estratégicos não tardarão a pôr em risco os padrões jornalísticos e a afetar em cheio a vida política. Pois a comunicação pública perde vitalidade discursiva quando lhe falta informação fundamentada ou discussão vivaz, coisas que não se obtêm sem custos.
07. Pois tão-somente a discussão deliberativa fundamenta a suposição de que, no longo prazo, os processos democráticos propiciam resultados mais ou menos racionais. Esse é o papel de uma esfera pública dotada de vitalidade discursiva. Esse papel se evidencia intuitivamente tão logo se tenha em mente a diferença entre o conflito público de opiniões concorrentes e a divulgação de pesquisas de opinião. Opiniões que se formam por meio de discussão e polêmica são, a despeito de toda dissonância, filtradas por informações e argumentos, enquanto as pesquisas de opinião apenas invocam opiniões latentes em estado bruto ou inerte.
08. Mas isso também não é necessário, pois a esfera pública é apenas um dos elos relevantes: ela faz às vezes de mediação entre discursos e discussões nos foros do Estado, de um lado, e as conversas episódicas ou informais de eleitores potenciais, de outro. Por essa via, a comunicação pública estimula e orienta a formação da opinião e do voto, ao mesmo tempo em que exige transparência e prontidão do sistema político. Sem o impulso de uma imprensa voltada à formação de opinião, capaz de fornecer informação confiável e comentário preciso, a esfera pública não tem como produzir essa energia.
09. Mas o mercado só é capaz de desempenhar essa função se as determinações econômicas não penetrarem nos poros dos conteúdos culturais e políticos dispersos no mercado. A observação cética é indispensável, pois nenhuma democracia pode se dar ao luxo de uma falha de mercado nesse setor.
O valor da notícia
JÜRGEN HABERMAS (1929) é um dos principais filósofos e sociólogos vivos. Colaborou entre 1955 e 1959 com Adorno e Horkheimer no Instituto de Pesquisa Social, em Frankfurt, e lecionou nas universidades de Heidelberg e de Frankfurt. Entre suas obras de maior impacto traduzidas para o português estão "Mudança Estrutural na Esfera Pública", "Direito e Democracia" e "Consciência Moral e Agir Comunicativo" (Tempo Brasileiro). Este texto foi publicado originalmente no jornal alemão "Süddeutsche Zeitung". Tradução de Samuel Titan Jr.
01. A crise dos jornais, desencadeada no começo de 2002 pelo colapso do mercado publicitário, ficou para trás - no "Süddeutsche Zeitung" e em outros órgãos de imprensa da mesma dimensão. Apesar da concorrência digital e dos novos hábitos de leitura, os lucros vêm aumentando.
Deixando de lado a boa conjuntura econômica, os lucros se devem, sobretudo a medidas de racionalização com impacto direto sobre o desempenho e a margem de manobra das redações. Notícias bombásticas à maneira do jornalismo norte-americano ditam a tendência atual.
02. Há três semanas, o "Die Zeit" voltou à carga, falando de um "ataque de Wall Street à imprensa dos EUA". O que há por trás desse tipo de manchete? Certamente, o temor de que os mercados não façam justiça à dupla função que a imprensa de qualidade até hoje desempenhou: atender à demanda por informação e formação, sem comprometer taxas de lucro aceitáveis. Mas os lucros em alta não serão uma confirmação de que jornais "enxutos" satisfazem melhor os desejos de seus consumidores?
03. A imprensa terá o direito de, sob o pretexto da "qualidade", cercear a liberdade de escolha de seus leitores? Por que forçar a leitura de reportagens áridas em vez de "infotainment" [fusão, em inglês, das palavras "information" e "entertainment", informação e entretenimento], comentários objetivos e argumentos circunstanciados, ao invés de encenações apelativas de personalidades e acontecimentos? A objeção que se manifesta nessas questões se baseia na suposição polêmica de que os consumidores escolhem com autonomia, segundo suas preferências pessoais. Pois essa mercadoria a um só tempo atende e transforma as preferências de seus consumidores.
04. Mas, quando se interessam por um programa político ou cultural, quando recebem a "bênção matinal realista" da leitura de jornais, todos se expõem - com alguma medida de autopaternalismo - a um processo de aprendizado de resultados imprevisíveis. No curso de uma leitura, novas preferências, convicções ou juízos podem se formar. Pensava-se que a produção e o consumo de programas televisivos podiam ser deixados inteiramente a cargo do mercado. Desde então, as empresas de comunicação cuidam de fornecer programas para seus espectadores enquanto vendem a atenção do público a seus anunciantes. Sempre que imperou sem peias, esse modo de organização causou danos políticos e culturais.
05. O sistema "híbrido" de televisão [na Alemanha] é uma tentativa de remediar o mal. E as leis locais, as decisões de tribunais federais e os princípios de programação das emissoras públicas refletem a noção de que as mídias eletrônicas não devem satisfazer apenas as necessidades mais comercializáveis dos consumidores. Ouvintes e espectadores não são apenas consumidores, mas também cidadãos com direito à participação cultural, à observação da vida política e à voz na formação de opinião. Com base nesses direitos, não é o caso de deixar programas voltados a tais necessidades fundamentais da população à mercê da conveniência publicitária ou do apoio de patrocinadores.
06. A imprensa de qualidade desempenha um papel de "liderança": o noticiário político do rádio e da televisão depende em larga escala dos temas e das contribuições provenientes do jornalismo "argumentativo". Suponhamos que uma dessas redações caia nas mãos de investidores que trabalham com lucros rápidos e prazos curtos: a reestruturação e o enxugamento nesses lugares estratégicos não tardarão a pôr em risco os padrões jornalísticos e a afetar em cheio a vida política. Pois a comunicação pública perde vitalidade discursiva quando lhe falta informação fundamentada ou discussão vivaz, coisas que não se obtêm sem custos.
07. Pois tão-somente a discussão deliberativa fundamenta a suposição de que, no longo prazo, os processos democráticos propiciam resultados mais ou menos racionais. Esse é o papel de uma esfera pública dotada de vitalidade discursiva. Esse papel se evidencia intuitivamente tão logo se tenha em mente a diferença entre o conflito público de opiniões concorrentes e a divulgação de pesquisas de opinião. Opiniões que se formam por meio de discussão e polêmica são, a despeito de toda dissonância, filtradas por informações e argumentos, enquanto as pesquisas de opinião apenas invocam opiniões latentes em estado bruto ou inerte.
08. Mas isso também não é necessário, pois a esfera pública é apenas um dos elos relevantes: ela faz às vezes de mediação entre discursos e discussões nos foros do Estado, de um lado, e as conversas episódicas ou informais de eleitores potenciais, de outro. Por essa via, a comunicação pública estimula e orienta a formação da opinião e do voto, ao mesmo tempo em que exige transparência e prontidão do sistema político. Sem o impulso de uma imprensa voltada à formação de opinião, capaz de fornecer informação confiável e comentário preciso, a esfera pública não tem como produzir essa energia.
09. Mas o mercado só é capaz de desempenhar essa função se as determinações econômicas não penetrarem nos poros dos conteúdos culturais e políticos dispersos no mercado. A observação cética é indispensável, pois nenhuma democracia pode se dar ao luxo de uma falha de mercado nesse setor.
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