Não há precedente – em lugar algum do mundo e em época alguma da história – de que tenha acontecido uma insurreição popular, com combates de rua, em virtude da abertura de um processo de impeachment.
Os tucanos erraram e agora querem dizer que acertaram. Afinaram uma explicação. Estão construindo uma versão. Dizia-se, na época da sua fundação, que o PSDB não era um partido, mas um álibi. Fiel à sua natureza – ou escravo da sua origem – o partido precisa sempre de álibis, depois de 2003 para justificar suas vacilações, sua leniência, sua conivência e seu colaboracionismo com o governo. O erro monumental de não ter interpelado Lula em 2005, quando vieram à tona os detalhes escabrosos do mensalão, também precisava de um álibi. Agora eles já têm. Vejamos.
Na entrevista concedida ao jornal O Estado de São Paulo (em 13/01/08), Fernando Henrique declarou:
“Entregamos o poder aos sindicalistas, essa é que é a verdade. Do ponto de vista sociológico, uma nova camada da sociedade chegou ao poder e o que acontece hoje no Brasil é fruto dessa ação. Quando se discutiu a possibilidade de impeachment do Lula, não entrei na conversa. Politicamente havia uma situação inequívoca, pois ficou demonstrado que o publicitário dele (Duda Mendonça) recebeu dinheiro no exterior para fazer a campanha a presidente. Qualquer prefeito do interior que tivesse uma acusação dessas nas costas seria cassado! Mas preferi pensar no País. Como enfrentar o impeachment de um presidente operário, um imigrante do Nordeste que pela primeira vez chega à Presidência? Que marcas isso iria deixar no Brasil? Eu me opus inclusive à idéia de deixar o Lula se desgastando lentamente, sangrando. Veja o que aconteceu com Getúlio Vargas. Veja o que aconteceu com Salvador Allende, no Chile. Veja o que se passou na Argentina. Não se quebra desse modo um líder político que vem de baixo, num país com uma desigualdade como a nossa”.
E na entrevista das páginas amarelas da Veja (16/01/08), que chegou às bancas no mesmo domingo, Arthur Virgílio, líder do PSDB no Senado, declarou:
“Nós acertamos. A abertura de um processo de impeachment traria um desgaste enorme ao país. Um processo de impeachment tem vários pés, é quase uma centopéia. É preciso motivo jurídico, que havia de sobra. Tem de ter crise de governabilidade, que não havia. Tem de ter desorganização de base parlamentar, que não havia. Precisa de clamor das ruas, que não havia. Se mesmo assim levássemos o processo adiante, enfrentando alguém que não queria deixar o cargo, o país seria dividido em dois, com choque de rua, seria pior do que na Venezuela. Não faria bem para a economia brasileira, passaríamos ao mundo a imagem de um país instável, que derruba um presidente a cada treze anos. Acho que o povo brasileiro errou ao reelegê-lo apesar de toda a crise. Mas todos os erros e acertos da população contribuem para a consolidação da democracia. Fazem parte do processo civilizatório de um país errar e acertar”.
As duas argumentações são bastante semelhantes. E igualmente falsas, ou falsificantes da realidade. Em suma, os dois líderes tucanos alegam que, embora existissem razões de sobra para o impeachment, tal não deveria ser feito em razão da grande popularidade de Lula e das conseqüências maléficas que um processo desse tipo traria ao país.
É óbvio que esse argumento, além de falso, é perigoso do ponto de vista da democracia e do Estado de direito. Antes de qualquer coisa eles estão dizendo que uma pessoa com alta popularidade pode fazer o que bem entender, pode cometer qualquer crime.
Mas analisemos os argumentos e as alegações de Fernando Henrique:
1 – Havia razões jurídicas e políticas (democráticas) para o impeachment (“Politicamente havia uma situação inequívoca, pois ficou demonstrado que o publicitário dele (Duda Mendonça) recebeu dinheiro no exterior para fazer a campanha a presidente. Qualquer prefeito do interior que tivesse uma acusação dessas nas costas seria cassado!”).
Ora, se havia “uma situação inequívoca”, então isso, pelo menos isso, deveria ter sido dito, na ocasião, pela oposição, não? Independentemente do pedido de impeachment, Lula deveria ter sido interpelado formalmente (para o que existem a justiça e as demais instituições). Mas a oposição não fez isso. Botou panos quentes. Fingiu-se de morta. Deixou passar.
2 – Houve uma decisão de, mesmo assim, não pedir o impeachment (“Mas preferi pensar no País”).
Não caberia à oposição tomar tal decisão. No mínimo ela deveria ter promovido um amplo processo de consulta à opinião pública e de debate na sociedade sobre o assunto. O PSDB fez isso? Não, não fez. Ficou mais preocupado com a “governabilidade” (de Lula) do que com a democracia e com o Estado de direito.
3 – As razões para não cumprir as leis que regem o Estado democrático de direito decorreram de avaliações políticas ou sociológico-políticas (“Como enfrentar o impeachment de um presidente operário, um imigrante do Nordeste que pela primeira vez chega à Presidência? Que marcas isso iria deixar no Brasil? Eu me opus inclusive à idéia de deixar o Lula se desgastando lentamente, sangrando. Veja o que aconteceu com Getúlio Vargas. Veja o que aconteceu com Salvador Allende, no Chile. Veja o que se passou na Argentina. Não se quebra desse modo um líder político que vem de baixo, num país com uma desigualdade como a nossa”).
Aqui, surpreendentemente, nosso inteligente e super-preparado ex-presidente mistifica as coisas. Há uma sutil alegação, meio indireta, de que retirar Lula pelo processo democrático seria semelhante a dar um golpe contra um presidente eleito (o caso de Allende). O mais grave, porém, é esse vício sociológico de dizer que as condições sociais podem ditar as razões do que se passa na esfera da política. Ora, um líder político que vem de baixo num país de grande desigualdade não pode passar por cima das leis do país, não pode cometer crimes, não pode montar quadrilhas para falsificar o processo democrático. Sua condição de classe e as condições sociais do país não o autorizam a colocar-se fora do império da lei.
Examinemos agora os argumentos de Arthur Virgílio:
1 – Havia motivo jurídico para o impeachment de Lula (“É preciso motivo jurídico, que havia de sobra”).
Bom, se havia motivo “de sobra” para o impeachment, por que o PSDB não declarou isso na ocasião (mesmo sem pedir o impeachment)?
2 – A despeito das razões políticas existentes, houve uma decisão de não pedir o impeachment (“Nós acertamos. A abertura de um processo de impeachment traria um desgaste enorme ao país”).
De quem é a avaliação? E a permanência de uma quadrilha organizada no governo também não significou um desgaste enorme para o país?
3 – Tal decisão foi baseada em uma avaliação da falta de outras condições para desencadear um processo de impeachment (“Tem de ter crise de governabilidade, que não havia. Tem de ter desorganização de base parlamentar, que não havia. Precisa de clamor das ruas, que não havia”).
Não existem tais condicionalidades na Constituição Federal: “crise de governabilidade”, “desorganização da base parlamentar” e “clamor das ruas”. Essas são condições para processos revolucionários, não para uma medida legal, democrática, pacífica, prevista pela Constituição, como é o impeachment. Quer dizer que um presidente poderia roubar, torturar, matar e tudo deveria ficar por isso mesmo se não houvesse crise de governabilidade, desorganização da base parlamentar e clamor das ruas? Por outro lado, como poderia haver desorganização da base parlamentar se a oposição não assumiu o seu papel de confrontar os meliantes com a lei, assediando os membros da base do governo para que tomassem uma posição diante dos fatos gravíssimos que foram revelados? E como poderia haver clamor das ruas se a oposição não foi para as ruas, denunciar, dizer à população o que estava acontecendo, mas preferiu se esconder para deixar a coisa esfriar?
4 – Tal decisão foi baseada numa avaliação das conseqüências nefastas de um processo de impeachment (“Se mesmo assim levássemos o processo adiante, enfrentando alguém que não queria deixar o cargo, o país seria dividido em dois, com choque de rua, seria pior do que na Venezuela. Não faria bem para a economia brasileira, passaríamos ao mundo a imagem de um país instável, que derruba um presidente a cada treze anos”).
Quem disse que “seria pior que na Venezuela”? Aposto que não. Aposto que o Brasil continuaria a sua vida institucional e econômica normalmente. Passados os primeiros momentos de susto, as pessoas continuariam indo para o trabalho, para os bares e restaurantes, para frente da TV com a família. O argumento do “choque de rua” é falso quando se trata de um processo democrático, legal e legítimo. Não há precedente – em lugar algum do mundo e em época alguma da história – de que tenha acontecido uma insurreição popular, com combates de rua, em virtude da abertura de um processo de impeachment.
Como se vê, os tucanos, emprenhados mais uma vez pelo PT, introjetaram a idéia de que o impeachment seria um golpe (algo semelhante ao que ocorreu com Allende, no Chile, como induziu sutilmente Fernando Henrique).
Eles sabem que não é assim. Sabem que não ocorreria nada disso no Brasil. Estão apenas buscando um álibi. Para não confessar que deixaram de fazer o que devia ser feito por simples covardia mesmo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário