terça-feira, abril 10, 2007

QUAL É HOJE A PRINCIPAL AMEAÇA À DEMOCRACIA?

O problema hoje não são apenas as tentativas, diagnosticadas por Dewey (foto) na sua época, de usar a democracia (como fim) contra a democracia (como meio). Trata-se, agora – e isso é muito mais difícil de perceber – de usar a democracia (como meio) contra a democracia (como-meio-que-é-o-próprio-fim), não confrontando os meios democráticos, substituindo-os por meio violentos (como faziam a extrema-direita e a velha esquerda revolucionária) e sim esvaziando esses meios de sua substantividade enquanto se mantém a sua casca, a sua liturgia, a sua ritualística formal.
Conquanto o Dewey-educador pareça ser razoavelmente conhecido entre nós, pouco se conhece, no Brasil, do Dewey-político. Refiro-me a John Dewey (1859-1952), o chamado filósofo da América, que no texto “Democracy is Radical”, publicado em janeiro de 1937, em "Common Sense" nº 6, estabeleceu as bases para uma compreensão da democracia que, infelizmente, parece não ter sido ainda alcançada, quer pelos nossos liberais, quer pelos nossos social-democratas. Trata-se de um pequeno artigo, de duas páginas, que passou meio desapercebido pelos teóricos da democracia da sua época e que continua, até hoje, sendo praticamente ignorado pelos que querem trabalhar com a radicalização da democracia (apesar do título já ser surpreendente, considerando-se a época em que foi escrito, ou seja, há mais de 70 anos).
Dewey começa o seu artigo, intitulado "A democracia é radical", dizendo que "poucas são as discordâncias entre os grupos de esquerda sobre os fins sociais a que aspiram, sobretudo se as compararmos com as enormes e explícitas diferenças que os separam na hora de determinar quais meios devem servir a tais fins e de que modo obtê-los. Semelhante discrepância sobre os meios – prossegue ele – é a expressão máxima da tragédia que a democracia vive em nossos dias. As autoridades da Rússia Soviética proclamam que, com a adoção legal da sua nova Constituição, o país conseguiu institucionalizar a democracia pela primeira vez na história. Quase ao mesmo tempo, Goebbels anuncia publicamente que o nacional-socialismo alemão é o único modelo de democracia para o futuro. É possível que, para os que cremos na democracia, expressões de tal jaez não passem de piada de mau gosto. Depois de um período no qual a democracia foi objeto de chacota e escárnio, parece que agora se tornou conveniente aclamá-la".

E continua John Dewey. "Certo é que ninguém que tenha seus pés fora do solo germânico dará crédito à afirmação de que a Alemanha é uma democracia e menos ainda que represente o modelo perfeito de democracia. Não obstante, a acusação de que os chamados Estados democráticos somente conseguiram atingir democracias "burguesas" merece nossa atenção. Por "democracia burguesa" se entende um sistema político no qual o poder recai, em última instância, nas mãos do capitalismo financeiro, por mais que se proclame que o governo é do, para e pelo povo. Examinando as coisas com certa perspectiva histórica, fica claro que a emergência de governos democráticos foi sempre o correlato de uma transferência do poder, que deixou de estar nas mãos do setor agrário para servir aos interesses do setor industrial e comercial".

Mas "essa transferência do poder – lembra o nosso filósofo – jamais teve lugar sem que se travasse certa luta. No desenvolvimento dessa luta, os representantes das novas forças de produção proclamavam que sua causa não era outra que a da liberdade e da livre escolha e iniciativa privada dos indivíduos. No continente e, em medida menor, na Grã Bretanha, a manifestação política da livre empresa adotou o nome de liberalismo. Os chamados partidos liberais eram os que apostavam na ação econômica dos indivíduos levada ao máximo e na mínima intervenção ou controle social. Com essa postura defendiam os interesses dos que desenvolviam sua atividade na industria e no comércio. Se todo o significado do liberalismo se esgotasse nessas manifestações, então o liberalismo como tal já teria cumprido seu papel e seríamos loucos se tentássemos ressuscitá-lo".

Dewey reconhece então que "esse movimento fracassou definitivamente na hora de levar à prática fins como a liberdade e a afirmação do indivíduo, coisa tanto mais grave se levarmos em conta que foi esse mesmo movimento que propôs tais objetivos, invocando-os liminarmente para estabelecer a legitimidade de sua supremacia política. Porém o mesmo movimento que uma vez representou esses fins, outorgou a uns poucos o poder sobre as vidas e os modos de pensar da maioria. A capacidade de impor as condições sob as quais a grande massa pública pode ascender aos meios de produção e aos bens que sua atividade requer, foi o instrumento fundamental de repressão das liberdades e o principal obstáculo para o desenvolvimento da individualidade através dos séculos. Seria absurdo negar que a mudança de senhores trouxe certas melhorias para as massas. Porém magnificar essas melhorias e fazer ouvidos moucos a todos os abusos e iniqüidades, ao despotismo, as repressões e as guerras, abertas ou encobertas, que concorrem no presente sistema, não passa de hipocrisia intelectual e moral. O falseamento e a estupidificação da personalidade humana que pratica o atual regime pecuniário e competitivo desmentem o dictum segundo o qual o sistema social vigente encarna a liberdade e a autonomia do indivíduo, e o desmentem em qualquer acepção de liberdade e individualidade na qual estas existam para todos por igual".

Mas "os Estados Unidos – aponta John Dewey – constituem uma importante exceção da tese segunda a qual, de um ponto de vista histórico, o nascimento da democracia respondia ao interesse de uma classe industrial e comercial, se bem que seja certo que, no processo de formação da constituição federal, essa classe tivesse colhido mais frutos da revolução dos que aqueles que lhe correspondiam. Não menos certo é que conforme este grupo foi se construindo com base no poder econômico, se apossou de crescentes quotas de poder político. Porém é simples e plenamente falso que este país seja meramente uma democracia capitalista, nem sequer em termos políticos. A agitação que nestes momentos vive o nosso país representa algo mais do que o protesto de uma nova classe – chame-se-a de proletariado ou de qualquer outra forma – contra uma autocracia industrial firmemente instalada no poder. É mais uma manifestação do espírito originário e imemorial da nação contra toda força usurpadora e destrutiva absolutamente estranha à democracia".

"Este país – continua argumentando Dewey – nunca contou com um partido político "liberal" de tipo europeu, ainda que durante as últimas campanhas o Partido Republicano tenha feito suas muitas consignas parecidas. Porem os ataques que os líderes do partido lançam sobre o liberalismo, considerando-o como mais uma manifestação da ameaça vermelha, demonstra que, nos Estados Unidos, o liberalismo conta com uma origem, um marco sociocultural e uma finalidade distintas. No fundamental, trata-se de uma tentativa de levar à prática os modos de vida democráticos, conferindo-lhes todo seu significado e seu amplo alcance. Não há nenhuma razão concreta para tentar salvar o termo "liberal". Porém temos todas as razões para não permitir que, com as censuras feitas ao liberalismo, se percam de vista os métodos e as aspirações da democracia. Esse perigo de eclipsar a democracia não se reduz a uma mera questão teórica; é uma questão candente e prática".

Chegamos assim ao centro da questão colocada por John Dewey. "A democracia não somente encarna fins que até os ditadores reivindicam hoje como próprios, fins como a segurança dos indivíduos e a oportunidade para que desenvolvam suas respectivas personalidades. A democracia significa, antes de qualquer coisa, defender os meios necessários para que tais fins possam ser levados a termo. Os meios que a democracia se esforça por articular são aqueles próprios da atividade voluntária em total ausência de coerção; trata-se de obter assentimento e consenso sem impor violência alguma. É a força da organização inteligente versus a força da organização imposta de fora para dentro e de cima para baixo. O princípio fundamental da democracia consiste em que os fins da liberdade e da autonomia para todo indivíduo somente podem ser alcançados empregando-se meios condizentes com esses fins. Defender a bandeira do liberalismo neste país, independentemente do que o liberalismo chegou a significar na Europa, é ter o valor de insistir na liberdade de crença, investigação, debate, reunião, educação e tudo isso sobre a base de um método de inteligência pública oposto às práticas coercitivas cujo exercício se defende em nome da liberdade final de todos os indivíduos. Não é difícil perceber certa hipocrisia intelectual e uma absoluta contradição moral no credo de todos aqueles que defendem a necessidade de que determinada classe social exerça uma ditadura, conquanto temporária, coisa que também pode constatar-se na postura dos que proclamam que no atual sistema econômico reina a liberdade de iniciativa e a igualdade de oportunidades".

Ele reconhece – num movimento ainda mais ousado – que “não há contradição alguma entre a busca de meios liberais e democráticos combinada com a defesa de fins socialmente radicais. E não só não há contradição, senão que nada nos induz a pensar que seja possível alcançar fins sociais radicais por meios que não sejam liberais e democráticos. Nem a história, nem a natureza humana, aportam razão alguma em defesa dessa possibilidade. Há quem pense que os que estão no poder jamais o abandonarão de moto próprio, se não se lhes forçar a fazê-lo empregando um poder ainda maior, porém esta idéia só pode ser corretamente aplicada no caso de ditadores, os quais pretendem estar atuando em nome das massas oprimidas, quando o certo é que estão fazendo uso do poder contra essas mesmas massas. O fim da democracia é, por si mesmo, de natureza radical. Pois se trata de um fim que jamais chegou a ser atingido em nenhum país e em nenhuma época. É um fim radical porquanto requer grandes mudanças nas instituições existentes, nas instituições sociais, econômicas, legais e culturais. Quando o liberalismo democrático não reconhece esses pontos, nem na teoria, nem na ação prática, deixa de ser consciente de seu próprio significado e das exigências que este impõe.”

Dewey conclui seu artigo acrescentando que "não há coisa mais radical do que insistir na articulação de métodos democráticos que sirvam como meios para efetuar mudanças sociais radicais. É assim que não falamos por falar quando qualificamos de reacionária a posição que confia implantar-se pela superioridade da força física. Pois este é o método de que o mundo vem dependendo até agora, um método com o qual o mundo volta a armar-se para a sua perpetuação. É fácil entender por que os que convivem com as iniqüidades e as tragédias cotidianas que caracterizam o atual sistema, por que os que são conscientes de que, afinal, contamos já com os recursos necessários para implantar um sistema que garanta a segurança e a igualdade de oportunidades para todos, hão de mostrar certa impaciência e anseiem acabar com o atual sistema, não importa qual seja o método. Porém a obtenção dos fins democráticos não pode divorciar-se da aplicação de meios democráticos. Temos que acalentar a esperança de que o ideal democrático renasça e se coesione em uma ampla mobilização. Porém esta causa não alcançará mais que vitórias parciais se não brotar de uma verdadeira confiança em nossa natureza humana comum e no poder da ação voluntária e baseada em uma inteligência pública e coletiva".

Eis a íntegra do libelo de Dewey, que deveria ser lido e relido todos os dias, ao levantar e antes ir para cama, pelos democratas hoje confrontados com renovadas tentativas de usar a democracia contra a democracia. O que espanta é a clareza desse senhor de quase 80 anos – e há 70 anos – diante de uma questão que se arrasta sem solução teórica e prática até os dias de hoje. Por que John Dewey pôde ter tamanha clareza? Por duas razões (é a minha hipótese): em primeiro lugar porque ele estava realmente convertido à democracia como idéia (e isso significa estar convencido da necessidade da sua radicalização) e, em segundo lugar, porque ele vivia um momento histórico em que a democracia estava sendo usada instrumentalmente para legitimar a autocracia (tanto à direita, com o nacional-socialismo alemão, quanto à esquerda, com o bolchevismo da III Internacional ainda em expansão). Volto assim à minha velha tese segundo a qual só se pode conceituar – e, portanto, conceber a – democracia diante da autocracia.

Mutatis mutandis, tudo indica que vivemos hoje um momento semelhante. Não estamos na iminência de uma guerra generalizada (como estava Dewey em 1937, na ante-sala da segunda grande guerra mundial) e não existem ameaças totalitárias globais semelhantes ao nazismo e ao comunismo. No entanto, a perversão da política promovida pelos diversos populismos (remanescentes ou reflorescentes, sobretudo na América Latina) constitui uma ameaça seriíssima à democracia que só pode ser plenamente percebida por quem está convencido – como Dewey estava – da necessidade da radicalização da democracia. Infelizmente tanto os liberais quanto os social-democratas de hoje não estão convencidos disso. Crêem que basta se postar (e ainda por cima timidamente) na defesa das regras formais do sistema representativo, com suas instituições e procedimentos limitados ao voto secreto, às eleições periódicas, à alternância de poder, aos direitos civis e à liberdade de organização política, enfim, ao chamado Estado de direito e ao império da lei. Parodiando Tayllerand, parecem não ter esquecido nada e também não ter aprendido nada com o século passado. Mas enquanto eles cochilam, vai avançando o uso da democracia contra a democracia com o fito de manter no poder, por longo prazo, grupos privados que proclamam o ideal democrático como cobertura para enfrear o processo de democratização das sociedades que parasitam.

O grande adversário da democracia hoje – pelo menos entre nós, na América Latina – não é uma suposta extrema-direita (aqui residual ou vestigial), nem sequer uma velha esquerda intoxicada pelas idéias bolchevistas, e sim o neopopulismo em suas diversas formas, da chavista a lulista. É bom reler Dewey – que pregava a indissociabilidade entre meios e fins democráticos – para ter tal clareza e não ficar lutando contra inimigos imaginários. A principal ameaça à democracia agora vem daqueles que respeitam um certo formalismo democrático (se especializando em disputar eleições e inclusive multiplicando processos eletivos; por exemplo, convocando plebiscitos e, em seguida, legitimando, sempre com base em critérios de maioria, alterações institucionais que introduzem procedimentos autocratizantes) para solapar substantivamente os procedimentos democráticos.

Mas o problema hoje não são apenas as tentativas, diagnosticadas por Dewey na sua época, de usar a democracia (como fim) contra a democracia (como meio). Trata-se, agora – e isso é muito mais difícil de perceber – de usar a democracia (como meio) contra a democracia (como-meio-que-é-o-próprio-fim), não confrontando os meios democráticos, substituindo-os por meio violentos (como faziam a extrema-direita e a velha esquerda revolucionária) e sim esvaziando esses meios de sua substantividade enquanto se mantém a sua casca, a sua liturgia, a sua ritualística formal. O mal em política hoje não está na introdução de práticas de guerra (reacionária ou revolucionária) que substituam as práticas não-violentas que caracterizam a democracia e sim na perversão da política como "arte da guerra" (ou como 'continuação da guerra por outros meios': a fórmula inversa de Clausewitz), mantendo-se os mesmos meios, ditos pacíficos, porém não pazeantes das relações políticas, gerando um clima adversarial que vinca as sociedades de cima a baixo por falsas contraposições entre elites e povo, entre conservadores e progressistas, entre direita e esquerda, como fazem – cada qual a seu modo – tanto Chávez, quanto Evo, quanto Lula. É claro que, a partir de certo momento, esse modo de perverter a política e parasitar a democracia acabará tendo que restringir mais abertamente as liberdades. Mas se ficarmos esperando tal momento em que eles avançarão o sinal da legalidade (ou da imagem justificável de legitimidade), já será muito tarde para reagir e, inclusive, para resistir.

A principal ameaça à democracia hoje é o neopopulismo. Os democratas devem, portanto, centrar agora todas as suas energias no combate ao neopopulismo, em todas as suas formas, inclusive naquela que é a mais safada de todas e a mais difícil de ser desmascarada porquanto mimetiza as formas de corrupção endêmicas à política tradicional como estratégia para degenerar as instituições e tomá-las por dentro: a lulista.

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