Embora, pela mecânica do sistema de dois turnos da eleição presidencial francesa, somente em duas semanas se conhecerá quem será o novo Presidente a ocupar as dependências do Palácio do Eliseu nos próximos cinco anos, os resultados provisórios do dia 22 de abril – que conduziram à disputa final a socialista Segoléne Royal e o líder da UMP Nicolas Sarkozy com 25% e 35% dos votos, respectivamente, já trazem um desdobramento transcendental para a vida política francesa: com esses resultados, os franceses parecem sinalizar para a necessidade de superação de uma cultura política tão mítica quanto anacrônica na história recente francesa, com quase 50 anos de enraizamento nas estranhas do país – as bases de tudo aquilo que se designa por cultura gaullista, essencialmente, a combinação de uma estrutura de poder vertical com uma ampla rede de proteção social e uma posição independente do país no plano das nações.
Mudança, ruptura suave, implantação da VI República foram consignas que atravessaram as páginas da maior parte dos programas dos candidatos, expressando sem dúvida um natural desejo de mudança do eleitor francês, menos em razão da avaliação crítica do presidente Chirac e mais, certamente, em função dos efeitos negativos e da necessidade de reforma dos traços anacrônicos das instituições da V República inaugurada pelo General De Gaulle - traços incompatíveis com uma economia globalizada e com um mundo multipolar. Ora, se a retórica dos contendores promete ampla reforma, as restrições estruturais – sociais e políticas – que se sedimentaram ao longo das últimas décadas no tecido social, econômico e político francês certamente levam a qualquer analista de bom senso a descartar mudanças radicais e visualizar, com boa vontade, alterações não mais do que marginais no cerne daquelas instituições.
Ora, se as redes de solidariedade social criadas no pós-guerra na maior parte dos países europeus – base do que se conhece por Estado de Bem Estar Social – sofreram recentemente ampla revisão nos países nórdicos, em especial na Holanda, Suécia e Reino Unido, de maneira a que se fossem enfrentados os desafios de competitividade impostos por uma economia globalizada e por uma estrutura produtiva flexível, sobretudo por meio de medidas de flexibilização dos contratos de trabalho e de redução dos seus custos sociais, na França o sistema de proteção social sedimentado por De Gaulle só se amplificou ao longo da IV República – configurando no país o que o candidato da centro-direita, Nicolas Sarkozy, denomina de república do “assistanato”. O custo do modelo social francês, com efeito, expressa-se em pontos diversos da economia, sobretudo numa taxa de desemprego crônica e elevada (há 25 anos essa taxa sempre esteve acima de 8%) e num ritmo de crescimento medíocre – ao longo dos últimos 15 o percentual médio de crescimento francês tem-se situado na casa de 1,9%, contra uma taxa média de crescimento de 2,8% do PIB entre os países da OCDE. Com o custo social do trabalho mais caro do mundo (30% de encargos patronais), a margem de inversão das empresas diminui e, com isso, a França hoje ocupa o posto nada honroso de trigésimo país em termos de competitividade econômica. Como efeito em cadeia, essas variáveis hoje estão na raiz do déficit comercial inédito no país e, sobretudo numa dívida pública que quintuplicou em um quarto de século, chegando hoje a 65% do PIB. A carga tributária de 44% do PIB é insuficiente para financiar o modelo social francês, cujo déficit implica grave injustiça distributiva geracional.
Ora, se o modelo social francês deve sem qualquer dúvida ser objeto de flexibilização, as instituições políticas inauguradas pela V República reclamam também revisão. Se as contingências da ocupação francesa na Segunda Guerra e o conflito da Argélia demandaram uma presidência forte, um chefe de estado de envergadura, a França moderna parece prescindir de estruturas de poder marcadas por forte verticalidade (a crise das instituições aparece no fato de mais de 70% dos franceses não se considerarem representados por nenhum partido ou líder político). A França de hoje parece exigir mais a figura do ativo chefe de governo do que a do emblemático e muitas vezes inoperante chefe de estado. Um semi-presidencialismo com cores menos carregadas no Presidente -tal qual o Português – estaria mais ao sabor de uma França renovada. Renovação, de resto, que já aparece na reposição geracional que ocorre hoje no cenário político, em que os dois contendores – Sarkozy e Segoléne – se situam na casa dos cinqüenta anos, em um país habituado a presidentes septuagenários.
Certamente, o terceiro pilar da V República a se renovar se refere às linhas da política externa adotadas pelos sucessivos presidentes. É fato que De Gaulle, em onze anos de presidência, marcou sua política externa tanto pela altivez como pela arrogância: recusou-se a chancelar tanto uma visão de Europa supranacional (defendia a Europa federativa, em parceria franco-alemã), como o alinhamento atlântico, com atos emblemáticos como a retirada do país da OTAN e a condenação ao envolvimento norte-americano no Vietnam, para não mencionar o veto à entrada do Reino Unido no Mercado Comum. A arrogância da diplomacia de De Gaulle tinha por base a idéia axiomática: o controle do armamento nuclear permitiria e demandaria ao país seguir uma política externa autônoma. Se o neogaullismo de Chirac evoluiu na direção da defesa de uma Europa supranacional, nem por isso a diplomacia francesa se viu despida de arrogância – a Europa de Chirac se constituía em projeto em que vanguarda política seria francesa e base econômica alemã. Ora, a o périplo em setembro de Sarkozy nos Estados Unidos deve ser vista menos como uma declarada inflexão atlanticista por parte do candidato da centro-direita e mais como uma sinalização da necessidade de uma política externa despida da arrogância da V República – necessidade ainda mais urgente com a derrota do projeto Europeu pelos franceses no referendum de 2005. Sabem os candidatos, sabem Bruxelas e Washington que o papel que a França jogará no plano externo será doravante papel de menor envergadura.
Sarkozy, Segoléne e o fim do gaullismo
Se as reformas nas diretrizes da V República são mais do que necessárias para a adaptação da França ao mundo globalizado, resta saber a margem de manobra do próximo presidente para processar tais reformas. Se se tem em vista as fortes estruturas corporativas insuladas no tecido social francês, as perspectivas de flexibilização são modestas. Diferentemente das estruturas corporativas inglesas, com setores ineficientes claramente passíveis de identificação, no caso francês o mesmo não ocorre – o estado social francês cobre vastos setores com forte poder de vocalização e organização, como os funcionários públicos, os professores, médicos e empresários, ao lado dos 2 milhões de franceses mantidos pelo RMI – o seguro desemprego local.
Se do ponto de vista da correlação de forças na sociedade as reformas de envergadura são pouco prováveis, no que se refere às forças políticas que chegaram ao segundo turno o cenário não é mais brilhante. A despeito da novidade Segolène, o PS francês figura como um dos partidos socialistas mais atrasados da Europa. Não seguiu o caminho reformista da social-democracia européia na direção do centro, certamente em razão de ter convivido coma a ameaça de forças expressivas situadas mais à esquerda ( embora com posições centristas, Segolène se viu obrigada a ostentar posições clássicas da esquerda – como o aumento do SMIC - para atrair o voto útil desses segmentos e se classificar para o segundo turno, evitando o erro de Jospin de 2002).
Já Sarkozy, o dinâmico e ambicioso líder da UMP se viu acantonado à direita pela lógica do primeiro turno (embora como ministro do interior tenha desenvolvido projetos de ação afirmativa, acabou por propor a criação do polêmico ministério da imigração). Hábil e pragmático (retirou de Chirac o controle da UMP), tem por desafio voltar ao centro, assegurar a maioria legislativa em junho, caso eleito, para por em marcha sua agenda de flexibilização – agenda que longe de se parecer como credo reaganista, traz um elenco minimalista de reformas, como diminuição da carga impositiva que recai sobre as empresas e dos custos sociais sobre o trabalho, como contrapartida de criação de empregos de longa duração.
Embora vagos os programas, com margem para adaptação à geometria da competição política, o embate entre Segolène e Sarokozy sugere um ponto de inflexão, em que os dilemas da globalização são identificados pelos eleitores, que procuram soluções dentro do marco institucional.
Mudança, ruptura suave, implantação da VI República foram consignas que atravessaram as páginas da maior parte dos programas dos candidatos, expressando sem dúvida um natural desejo de mudança do eleitor francês, menos em razão da avaliação crítica do presidente Chirac e mais, certamente, em função dos efeitos negativos e da necessidade de reforma dos traços anacrônicos das instituições da V República inaugurada pelo General De Gaulle - traços incompatíveis com uma economia globalizada e com um mundo multipolar. Ora, se a retórica dos contendores promete ampla reforma, as restrições estruturais – sociais e políticas – que se sedimentaram ao longo das últimas décadas no tecido social, econômico e político francês certamente levam a qualquer analista de bom senso a descartar mudanças radicais e visualizar, com boa vontade, alterações não mais do que marginais no cerne daquelas instituições.
Ora, se as redes de solidariedade social criadas no pós-guerra na maior parte dos países europeus – base do que se conhece por Estado de Bem Estar Social – sofreram recentemente ampla revisão nos países nórdicos, em especial na Holanda, Suécia e Reino Unido, de maneira a que se fossem enfrentados os desafios de competitividade impostos por uma economia globalizada e por uma estrutura produtiva flexível, sobretudo por meio de medidas de flexibilização dos contratos de trabalho e de redução dos seus custos sociais, na França o sistema de proteção social sedimentado por De Gaulle só se amplificou ao longo da IV República – configurando no país o que o candidato da centro-direita, Nicolas Sarkozy, denomina de república do “assistanato”. O custo do modelo social francês, com efeito, expressa-se em pontos diversos da economia, sobretudo numa taxa de desemprego crônica e elevada (há 25 anos essa taxa sempre esteve acima de 8%) e num ritmo de crescimento medíocre – ao longo dos últimos 15 o percentual médio de crescimento francês tem-se situado na casa de 1,9%, contra uma taxa média de crescimento de 2,8% do PIB entre os países da OCDE. Com o custo social do trabalho mais caro do mundo (30% de encargos patronais), a margem de inversão das empresas diminui e, com isso, a França hoje ocupa o posto nada honroso de trigésimo país em termos de competitividade econômica. Como efeito em cadeia, essas variáveis hoje estão na raiz do déficit comercial inédito no país e, sobretudo numa dívida pública que quintuplicou em um quarto de século, chegando hoje a 65% do PIB. A carga tributária de 44% do PIB é insuficiente para financiar o modelo social francês, cujo déficit implica grave injustiça distributiva geracional.
Ora, se o modelo social francês deve sem qualquer dúvida ser objeto de flexibilização, as instituições políticas inauguradas pela V República reclamam também revisão. Se as contingências da ocupação francesa na Segunda Guerra e o conflito da Argélia demandaram uma presidência forte, um chefe de estado de envergadura, a França moderna parece prescindir de estruturas de poder marcadas por forte verticalidade (a crise das instituições aparece no fato de mais de 70% dos franceses não se considerarem representados por nenhum partido ou líder político). A França de hoje parece exigir mais a figura do ativo chefe de governo do que a do emblemático e muitas vezes inoperante chefe de estado. Um semi-presidencialismo com cores menos carregadas no Presidente -tal qual o Português – estaria mais ao sabor de uma França renovada. Renovação, de resto, que já aparece na reposição geracional que ocorre hoje no cenário político, em que os dois contendores – Sarkozy e Segoléne – se situam na casa dos cinqüenta anos, em um país habituado a presidentes septuagenários.
Certamente, o terceiro pilar da V República a se renovar se refere às linhas da política externa adotadas pelos sucessivos presidentes. É fato que De Gaulle, em onze anos de presidência, marcou sua política externa tanto pela altivez como pela arrogância: recusou-se a chancelar tanto uma visão de Europa supranacional (defendia a Europa federativa, em parceria franco-alemã), como o alinhamento atlântico, com atos emblemáticos como a retirada do país da OTAN e a condenação ao envolvimento norte-americano no Vietnam, para não mencionar o veto à entrada do Reino Unido no Mercado Comum. A arrogância da diplomacia de De Gaulle tinha por base a idéia axiomática: o controle do armamento nuclear permitiria e demandaria ao país seguir uma política externa autônoma. Se o neogaullismo de Chirac evoluiu na direção da defesa de uma Europa supranacional, nem por isso a diplomacia francesa se viu despida de arrogância – a Europa de Chirac se constituía em projeto em que vanguarda política seria francesa e base econômica alemã. Ora, a o périplo em setembro de Sarkozy nos Estados Unidos deve ser vista menos como uma declarada inflexão atlanticista por parte do candidato da centro-direita e mais como uma sinalização da necessidade de uma política externa despida da arrogância da V República – necessidade ainda mais urgente com a derrota do projeto Europeu pelos franceses no referendum de 2005. Sabem os candidatos, sabem Bruxelas e Washington que o papel que a França jogará no plano externo será doravante papel de menor envergadura.
Sarkozy, Segoléne e o fim do gaullismo
Se as reformas nas diretrizes da V República são mais do que necessárias para a adaptação da França ao mundo globalizado, resta saber a margem de manobra do próximo presidente para processar tais reformas. Se se tem em vista as fortes estruturas corporativas insuladas no tecido social francês, as perspectivas de flexibilização são modestas. Diferentemente das estruturas corporativas inglesas, com setores ineficientes claramente passíveis de identificação, no caso francês o mesmo não ocorre – o estado social francês cobre vastos setores com forte poder de vocalização e organização, como os funcionários públicos, os professores, médicos e empresários, ao lado dos 2 milhões de franceses mantidos pelo RMI – o seguro desemprego local.
Se do ponto de vista da correlação de forças na sociedade as reformas de envergadura são pouco prováveis, no que se refere às forças políticas que chegaram ao segundo turno o cenário não é mais brilhante. A despeito da novidade Segolène, o PS francês figura como um dos partidos socialistas mais atrasados da Europa. Não seguiu o caminho reformista da social-democracia européia na direção do centro, certamente em razão de ter convivido coma a ameaça de forças expressivas situadas mais à esquerda ( embora com posições centristas, Segolène se viu obrigada a ostentar posições clássicas da esquerda – como o aumento do SMIC - para atrair o voto útil desses segmentos e se classificar para o segundo turno, evitando o erro de Jospin de 2002).
Já Sarkozy, o dinâmico e ambicioso líder da UMP se viu acantonado à direita pela lógica do primeiro turno (embora como ministro do interior tenha desenvolvido projetos de ação afirmativa, acabou por propor a criação do polêmico ministério da imigração). Hábil e pragmático (retirou de Chirac o controle da UMP), tem por desafio voltar ao centro, assegurar a maioria legislativa em junho, caso eleito, para por em marcha sua agenda de flexibilização – agenda que longe de se parecer como credo reaganista, traz um elenco minimalista de reformas, como diminuição da carga impositiva que recai sobre as empresas e dos custos sociais sobre o trabalho, como contrapartida de criação de empregos de longa duração.
Embora vagos os programas, com margem para adaptação à geometria da competição política, o embate entre Segolène e Sarokozy sugere um ponto de inflexão, em que os dilemas da globalização são identificados pelos eleitores, que procuram soluções dentro do marco institucional.
Um comentário:
Me parece que flexibilizar as leis trabalhistas seria um retrocesso. Se o ser humano não fosse alienado, ele lutaria, como lutou no passado, e como a França tem uma enorme tradição na area educacional e política, portanto, avante. Não estou aqui representando comunismo ou algo relacionado a trabalhadores, mas se flexibilizar agora, vamos flexibilizar um pouco mais daqui a 15 anos, e ai para frente é igual a retrocesso. Os industriais, os donos de empresas, a alta classe média vai exigir constantemente isso, pois eles não precisam trabalhar como "o trabalhador", precisam de mais mão-de-obra barata, que va consumir mais e os gerar mais lucros. Esse sim é o MAL capitalismo, pois se todos os países adotassem o modelo francês seria diferente. Mas o homem, é persistente, e garanto que vem muita coisa pela frente. Tempos difíceis virão.
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