segunda-feira, dezembro 31, 2007

Um Ano Novo?

Todos nós gostamos de anunciar boas notícias na passagem do ano. Queremos ser portadores de esperança, profetas de “amanhãs que cantam”.
Preparem-se, porém, caros leitores. O que vocês verão aqui é o oposto. É um chamamento – em nome da responsabilidade política – para aposentar de vez o wishful thinking: quer como compensação psicológica (uma forma de auto-engano), quer como discurso marqueteiro para conquistar clientes, apoiadores ou admiradores políticos.

É preciso reconhecer que, infelizmente, as notícias não são alvissareiras neste final de 2007. Ao contrário do que cantaram os adeptos da New Age (em suas diversas formas, das mais racionalistas até às mais espiritualistas), é muito grave a situação do mundo nesta primeira década do terceiro milênio. E isso tende a se agravar na próxima década (ou, pelo menos, nos próximos cinco a sete anos). É o que estou prevendo e vou tentar dizer por quê.

O século 21 começou mal. Por toda parte verifica-se um recrudescimento do estatismo e do unilateralismo, acompanhado de um declínio da democracia: tanto em termos da taxa de democratização dos países, que vinha crescendo desde os anos 20 do século passado e que caiu a partir do final da década de 1990, quanto do ponto de vista dos retrocessos autocratizantes verificados em vários regimes na América do Sul, na Ásia e na África.

O que preocupa, ao contrário do que afirmaram há poucos anos as grandes potências ocidentais, não é só o terrorismo islâmico – uma reação violenta ao processo de globalização e, sobretudo, ao processo de miscigenação (sim, a Al Qaeda é a afirmação perversa de uma espécie de culturalismo intolerante, uma resistência desesperada a um mundo que tende a ser tornar mestiço em termos culturais). Temos razões de sobra para nos preocupar, mais ainda, com o combate ao terrorismo que poupa, em nome da racionalidade econômica, as emergentes autocracias do petróleo e do gás: sejam ditaduras como Angola e o Irã, sejam protoditaduras, como a Rússia e a Venezuela (vergonhosamente apoiadas, por sua vez, pelas velhas ditaduras como China e Cuba).

Putin (um assassino da KGB) recebe o título de personalidade do ano da revista Times. Tal distinção tem um forte conteúdo simbólico regressivo. Os ditadores chineses são admirados no mundo todo – e inclusive por nossos empresários – por terem aplicado a fórmula exitosa do capitalismo de Estado. E ninguém lhes põe reparo quando protegem o Irã e promovem uma recolonização econômica da África. Venezuela cresce a taxas chinesas. Angola cresce a taxas ainda mais altas, estratosféricas (o dobro das chinesas). Os economistas liberais – adeptos de uma espécie de religião laica: o fundamentalismo de mercado – que passaram a vida inteira tentando nos enganar com a mentira de que crescimento econômico (crescimento do PIB) era o mesmo que desenvolvimento, agora já não sabem bem o que dizer.

A China é boa porque cresce a taxas superiores a 10% ao ano? E o que dizer de Angola que cresce a 26%? A Rússia de Putin pode fazer o que quiser, pois tem muito petróleo, muito gás (e muitas armas)? A Venezuela de Chávez pode desestabilizar os regimes latino-americanos usando o dinheiro de sobra da estatal PDVSA? E o Irã agora já pode fazer o que bem entender (pois também tem lá suas reservas não desprezíveis do “ouro negro”)?

Mas o que fazer se esses países resolverem se unir em uma aliança pragmática em nome da reafirmação do Estado (pouco importando sua declarada ideologia) e contra a democracia e a liberdade? Bush e Blair (e seu sucessor) não estavam preparados para responder essa questão. Os regimes europeus mais civilizados não estavam preparados para responder essa questão. O fato é que nem os liberais, nem os chamados social-democratas (que são, na verdade, estatal-democratas), estavam preparados para o inusitado mundo que emergiu após os atentados de 11 de setembro de 2001.

We become what we hate! O caminho de combate ao terrorismo escolhido pelas grandes potências ocidentais trouxe, como lamentável contrapartida, um recrudescimento do estatismo, aprofundando all over the world o autoritarismo dos regimes políticos e contaminando o planeta com superávits de ordem (ou – o que é a mesma coisa – com déficits de liberdade). Vejam agora o que se passa no Paquistão nuclear, onde o candidato a ditador Pervez Musharraf se prepara para tirar proveito do assassinato de Benazir Bhutto, promovendo uma autocratização ainda maior do regime em nome do combate ao terrorismo.

Não, não é um pesadelo: isso está acontecendo, debaixo de nossos olhos. A onda estatizante é uma onda autocratizante. Como disse Thomas Melia, vice-diretor-executivo da Freedom House, “há uma outra Guerra Fria a caminho. Agora não é Oriente versus Ocidente, mas democracia versus não-democracia”.

Má notícia! Essa nova guerra fria não está a caminho: já chegou! Mas nem nossos liberais, nem nossos social-democratas, viram nada. Estão cegos. Ainda estão acreditando que o crescimento econômico e a mão invisível do mercado levará ao desenvolvimento e à democratização das sociedades.

O que está ocorrendo, porém, é o oposto: crescimento, sim, mas com mais-Estado; crescimento sim, mas com menos-democracia. Como constatou
Andy Robinson, em artigo publicado nestes dias (La Vanguardia, 28/12/07), o nacionalismo (leia-se: estatismo) de recursos está provocando “uma nova guerra fria”... para a qual estão se reunindo “líderes nada sintonizados com o consenso liberal da globalização, privatização e mercados livres, de Hugo Chávez a Evo Morales, de Vladimir Putin a Mahmud Ahmadinejad”. É “o novo poder geopolítico dos produtores de petróleo e gás, que se estende do Oriente Médio à América Latina, da antiga União Soviética à África”.

Vejam algumas das evidências apresentadas por Robinson:


1)
“Na última terça-feira em La Paz (Bolívia), a Gazprom, gigante de energia controlada pelo Estado russo [da qual se diz que Putin detém 4,5% das ações], já presente na Venezuela, anunciou um investimento de 1,4 bilhão de euros no setor de gás boliviano, justamente no momento em que as multinacionais privadas, assustadas com as políticas de nacionalização do presidente Evo Morales, andam pisando em ovos”.

2)
“Ao mesmo tempo, produtores de energia acumularam bilhões de petrodólares em poderosos veículos estatais de investimento, como a Autoridade de Investimentos de Abu Dhabi, hoje maior acionista do maior banco do mundo, o Citigroup. A Arábia Saudita, maior produtor mundial de petróleo, acaba de anunciar que criará o maior fundo de investimentos estatal do mundo e com maior participação de empresas petroleiras estatais. Desde a Gazprom até a PDVSA venezuelana ocorre uma transferência de poder do setor privado para os Estados”.

3)
“As empresas estatais chinesas, por sua vez, assinaram acordos de fornecimento em longo prazo da África - Sudão, Chade, Argélia, Angola -, ao Oriente Médio e a América Latina, o que reforça a posição dos países petroleiros menores. O novo governo equatoriano de Rafael Correa se incorporou à Opep e rescindiu o contrato da multinacional americana Occidental”.

4)
“Desafiando diretamente os EUA e a Europa na área do mar Cáspio, Rússia e China assinaram acordos com países produtores como o Casaquistão, o último convertido à causa do nacionalismo de recursos, que renegociou contratos com multinacionais como Exxon-Mobil e Royal Dutch Shell para elevar as receitas estatais na exploração no mar Cáspio. Ao mesmo tempo, o governo cazaque de Nursultan Nazarbajev anunciou um acordo com Putin para construir um gasoduto do Cáspio até a Rússia, frustrando as tentativas européias de reduzir sua dependência do gás da Rússia”.

5)
“Os investimentos chineses e russos em infra-estrutura petroleira e em armamentos no Irã abortaram a estratégia dos EUA e Israel de forçar uma mudança de regime no Irã”.


Pois bem. O que os nossos liberais e os nossos social-democratas não viram? Eles não viram, fundamentalmente, que essa nova “guerra fria econômica”, de que fala Robinson, é a mesma nova “guerra fria política” (contra a democracia) de que fala Melia.

Todos os países que estão se unindo nessa regressiva aliança estatista (ou do “neonacionalismo de recursos”) são países com altos índices de crescimento e baixos índices de desenvolvimento (quer se considere o desenvolvimento humano, medido pelo IDH – Índice de Desenvolvimento Humano do PNUD; quer se considere o desenvolvimento econômico, medido pelo CGI – Índice de Competitividade Global do Fórum Econômico Mundial; quer se considere o desenvolvimento tecnológico e a sintonia com as inovações contemporâneas, medido pelo IG – Índice de Globalização, da AT Kearney/Foreign Policy). Nenhum desses países da aliança do estatismo-regressivo tem IDH igual ou superior a 0,9. Nenhum deles tem CGI maior ou igual a 4,6. E nenhum deles figura na lista dos 30 países que têm ambientes mais favoráveis à inovação. Será por acaso?

O mundo democrático desenvolvido – tendo a frente países como Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Coréia do Sul, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Finlândia, França, Holanda, Hong Kong, Irlanda, Islândia, Israel, Itália, Japão, Luxemburgo, Noruega, Nova Zelândia, Portugal, Reino Unido, Singapura, Suécia e Suíça – está virando uma ilha de prosperidade econômica e boa governança, crescentemente cercada por países que crescem a altas taxas, dominados por regimes mais ou menos bestiais, que estão pouco se lixando para coisas como democracia, Estado de direito, civilidade ou decência.

É fato: todos os paises que estão apoiando ou se unindo nessa aliança estatista são ditaduras (como China ou Angola) ou protoditaduras (como Rússia ou Venezuela). O grande perigo – pelo menos para nós – é que consigam atrair as democracias formais parasitadas por regimes neopopulistas manipuladores (como Argentina e Brasil).

Perdão por enviar uma mensagem tão fúnebre numa época que deveria ser de esperança. Mas o fato é que, do ponto de vista da democracia e do desenvolvimento humano e social sustentável, o mundo não vai nada bem nesta quadra. Esquerda e direita estão se unindo em torno da reafirmação do Estado e a primeira vítima já está sendo a liberdade.

E as coisas só tendem a piorar se não acordarmos, se não cairmos na real, se não reconhecermos que nossos esquemas de interpretação do mundo foram por água abaixo e se não tomarmos a firme decisão de buscar novos caminhos, não mais baseados no estadocentrismo ou no mercadocentrismo, no coletivismo massificante ou no individualismo estiolante.

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